domingo, 24 de abril de 2011

Os poderes de condenação do tribunal no domínio da acção administrativa especial de condenação à prática de acto administrativo devido

Os poderes de condenação do tribunal no domínio da acção administrativa especial de condenação à prática de acto administrativo devido
1. Enquadramento geral
Uma das inovações trazidas pela Reforma de 2002 do Contencioso Administrativo foi a acção administrativa especial de condenação à prática de acto administrativo devido, inspirada directamente na VwGO alemã de 1960 e regulada nos arts. 66.º ss CPTA.
Esta introdução veio superar a exclusividade do modelo cassatório de anulação dos actos de indeferimento – anteriormente, o único meio de que dispunha o particular que carecesse de um acto administrativo (devido), caso em que impugnava o acto administrativo de indeferimento, expresso ou tácito –, passando a reconhecer-se que o objecto do processo nas acções de condenação é a própria pretensão do particular e não o eventual acto de indeferimento, conforme dispõe o art. 66.º/2 CPTA. O juízo deixa de debruçar-se sobre o acto para passar a incidir sobre a relação administrativa[1],[2].
O art. 71.º CPTA, sob a epígrafe «Poderes de pronúncia do tribunal» pode ser qualificado como a «pedra de toque» da acção especial de condenação à prática de acto devido[3].
O preceito manifesta o sentido inequívoco da revisão de 2002 e da introdução desta nova forma de processo, em concordância com o disposto no art. 66.º/2 CPTA: o tribunal deve pronunciar-se sobre a pretensão material do particular, mesmo quando sobre ela a Administração se não haja pronunciado ou quando haja recusado a apreciação do requerimento apresentado pelo particular. Fica, por isso, afastada a lógica revisora dos processos cassatórios.
Rejeitam-se, assim, as meras sentenças de anulação ou declaração de nulidade dos actos administrativos: se a pretensão do particular for considerada procedente, o processo deve terminar com uma sentença de condenação à prática de um acto administrativo, não sendo suficiente que o tribunal anule ou declare nulo o acto de indeferimento[4].
A apreciação deste poder que a lei confere ao tribunal não é isenta de dificuldades, desde logo, porque se trata de uma sentença que vem condenar a Administração à prática de um acto que será, naturalmente, um acto administrativo. Pode este cenário oferecer-se bastante problemático, pois, em caso algum, pode o tribunal substituir-se à Administração naquela que é a sua margem de livre apreciação, naquela que é a área em que rege o seu poder discricionário – está aqui em causa o princípio da separação de poderes, consagrado nos arts. 2.º CPR e 3.º CPTA.
2. Os poderes de cognição do tribunal no caso particular dos conceitos indeterminados
Questão paradigmática nesta sede é a concernente aos conceitos indeterminados que, pela sua natureza, deverão ser preenchidos pelo seu aplicador – numa primeira instância, pela própria Administração. Em que circunstância poderá o tribunal pôr em causa esse preenchimento e essa interpretação, decidindo diversamente?
Pela importância que esta apreciação jurisprudencial pode ter, em separado se analisam os poderes do juiz nesta matéria.
É hoje reconhecido que os conceitos indeterminados são sindicáveis – a Administração não é, pois, «senhora» da interpretação daqueles conceitos, podendo a interpretação que faça ser questionada junto dos tribunais.
O STA[5] já identificou algumas situações típicas em que a interpretação dos conceitos indeterminados feita pela Administração pode ser questionada:
a)      A maioria dos conceitos descritivos cujo critério de avaliação não exige conhecimentos técnicos especiais (ex. «grande quantidade»)
b)      As classes de conceitos de valor, cujo critério de concretização resulta, directamente, da exegese dos textos legais (ex. «local apropriado»)
c)      Todos os conceitos de valor cuja concretização envolva juízos mais especificamente jurídicos, para cujo preenchimento deve ser reconhecido terem os tribunais conhecimentos bastantes (ex. «jurista de reconhecida idoneidade»)
Quando o conceito visa confiar à Administração a tarefa da formulação de valorações próprias do exercício da sua função, só poderá sindicar-se a posição da Administração em casos de erro manifesto de apreciação e de aplicação de critério manifestamente inadequado.
Assim, o Acórdão do STA (Pleno) de 27/01/2008 (Proc. N.º 269/02), que considerou o conceito de «interesse público» um conceito indeterminado, gozando a Administração de liberdade de escolha dos elementos atendíveis para o preenchimento do conceito, o que bem se compreende, pois existe aqui uma certa decisão política que não pode ser confiada aos tribunais, sob pena de violação do princípio da separação de poderes.
3. As sentenças de condenação à prática de acto administrativo devido
Dadas as particularidades acima descritas, relacionadas com o especial cuidado que tem de ser dado ao princípio da separação de poderes, analisar-se-ão agora, os vários tipos de sentenças condenatórias passiveis de serem emitidas na acção administrativa especial de condenação à prática de acto devido.
«Os processos de condenação à prática de actos administrativos são processos de geometria variável»[6], pelo que as pronúncias judiciais têm alcance diverso conforme a configuração dos processos em que são emitidas.
Parece possível distinguir quatro tipos de situações diferentes e, consequentemente, quatro modalidades de sentenças: i) as sentenças que constituem a Administração num dever estrito de prática de um acto administrativo de conteúdo vinculado; ii) as sentenças em caso de redução da discricionariedade a zero; iii) as sentenças indicativas, em que o tribunal identifica e especifica os aspectos vinculados e iv) as sentenças que condenam à prática de acto discricionário em absoluto[7].
3.1.Os casos de vinculação legal do conteúdo do acto a praticar
Pode ocorrer que a lei confira directamente ao Autor o direito a um acto administrativo com um determinado conteúdo, caso que se soluciona com o art. 71.º/1. Nesta situação, a apreciação da ilegalidade do acto (eventualmente) praticado corresponde precisamente à condenação da Administração à prática do acto pretendido pelo particular.
3.2. Os casos de redução da discricionariedade a zero
Pode haver casos em que não exista uma estrita vinculação legal do acto, tendo a Administração poderes discricionários de actuação, ou de conformação do conteúdo do acto.
Porém, em concreto, dadas as circunstâncias do caso, só lhe resta praticar um acto com um determinado conteúdo. Identifica-se, assim, «apenas uma solução como legalmente possível». Nestes casos, como resulta do art. 71.º/2 CPTA, o tribunal pode (e deve) condenar a Administração à emissão do acto, que é, como se disse, o único possível, não obstante o facto de Administração ter, como se disse, poderes discricionários.
3.3. As «sentenças indicativas» dos aspectos vinculados
Mas poderá ainda ocorrer que o acto administrativo não se encontre vinculado de qualquer forma quanto ao seu conteúdo, cabendo à Administração a decisão de mérito quanto à pretensão do particular, em respeito pelo já aludido princípio da separação de poderes.
Aquilo que o tribunal poderá fazer, nesta circunstância, é precisamente a identificação e especificação dos aspectos vinculados que a Administração deve ter em conta.
É o que acontece, por exemplo, nos casos de indeferimento ilegal, em que o tribunal deve condenar a Administração à substituição do acto ilegal por outro que o não seja[8],[9].
Lembra Vasco Pereira da Silva[10] que este tipo de sentenças ou condenações se inspiram nas «sentenças indicativas» do Direito Alemão, que tanto podem ocorrer em caso de omissão de pronúncia como de acto administrativo desfavorável.
3.4. A condenação à prática de um qualquer acto administrativo (discricionário)
Uma última situação susceptível de ser configurada é aquela em que a única vinculação do acto administrativo pretendido respeita à oportunidade da sua emissão, ou seja, em que o acto deve ser emitido, mas não existe qualquer vinculação que o tribunal possa impor à Administração no tocante à sua prática.
Mário Aroso de Almeida[11] indica dois tipos de casos em que pode ocorrer esta condenação. Em primeiro lugar, os casos de inércia ou omissão da Administração, em que esta disponha de amplos poderes discricionários e não tenha fornecido quaisquer elementos para que a questão pudesse ser levada a juízo em termos mais concretos do que aqueles em que surge configurada nas normas.
Em segundo lugar, os casos em que a Administração disponha de amplos poderes discricionários e tenha infundadamente invocado questões prévias para se recusar a apreciar a pretensão que perante ela tenha sido formulada. Nestes casos, o tribunal apenas pode verificar que tais questões prévias não existiam e, por isso, condenar a Administração a apreciar o mérito da pretensão do particular.
Aqui, o juiz condena à prática de qualquer acto devido e não à prática de um determinado acto devido, pois não pode apreciar a forma como a Administração apreciou a causa, uma vez que esta não o fez, efectivamente.
4. Conclusões
O legislador parece ter sido sábio. Respeitando as particularidades da questão relacionada com o necessário respeito pelo princípio da separação de poderes, consagrou uma solução equilibrada – os tribunais não podem substituir-se à Administração nem impor-lhe uma conduta que a lei ou o caso concreto não permitam descortinar como impositiva.
Apenas neste último caso poderá o juiz emitir um comando, mais ou menos concretizado, de actuação.
Atendendo aos receios que precederam à consagração desta acção administrativa especial de condenação à prática de acto devido, relacionadas com o «beliscar» da discricionariedade administrativa, parece que a solução legal conseguiu ponderar anseios e receios de mudança, prevendo uma solução eficiente, aumentando as garantias dos particulares, sempre no respeito pela Constituição.


[1] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2.ª ed., Almedina, 2009, p. 388.
[2] Esta solução era uma das hipóteses possíveis de concretização da alteração constitucional de 1997, que veio impor, no art. 268.º/4 CRP, a possibilidade da determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos como corolário da tutela jurisdicional efectiva garantida aos particulares. Este preceito poderia ser cumprido através da garantia de uma tutela declarativa, de uma tutela condenatória ou de uma tutela substitutiva. O legislador optou pela segunda.
[3] Mário Aroso de Almeida, Comentário ao CPTA, 3.ª ed., Almedina, 2010, p. 467.
[4] Assim se compreende o disposto no art. 51.º/4 CPTA. Os actos de indeferimentos não podem ser judicialmente contestados apenas através de uma acção de impugnação de um acto administrativo emitido ou fictício, devendo, se o fizer, ser o Autor convidado «a substituir a petição, para o efeito de formular o adequado pedido de condenação à prática do acto devido».
[5] Acórdãos do STA de 14/06/2007 (Proc. N.º 140/07) e de 17/01/2007 (Proc. N.º 1068/06)
[6] Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª ed., Almedina, 2005, p. 226.
[7] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso…, op. cit., p. 392, nota 114, distingue apenas dois tipos, numa lógica de contraposição da vinculação à discricionariedade, entendendo que apenas no primeiro caso há vinculação, sendo que nos restantes três é o poder discricionário da Administração a pedra de toque.
Parece resultar das palavras de Mário Aroso de Almeida, Comentário…, op. cit., pp. 474 ss, que este Autor distingue três modalidades – a condenação à prática de acto estritamente vinculado, no qual insere a condenação em caso de redução da discricionariedade a zero, a condenação indicativa e a condenação à prática de qualquer acto, em que há poder discricionário em absoluto.
Optei por fazer uma sistematização diversa, já que parece, em adesão argumento usado por Vasco Pereira da Silva, que a sentença em caso de redução da discricionariedade a zero se distingue da sentença de condenação à prática de acto vinculado, pois naquela é o caso concreto – e não a lei, de per si – que vincula a Administração, que, numa circunstância diversa daquela, teria, pois, liberdade de conformação da sua actuação. Porém, nem todos os casos em que existe discricionariedade administrativa me parecem iguais, dado que essa mesma discricionariedade se apresenta com graus diversos. Optei, por isso, por autonomizar quatro tipos de casos.
[8] Assim, a título exemplificativo e em termos gerais, um indeferimento que conclui um procedimento administrativo em que não ocorreu audiência dos interessados.
[9] Mário Aroso de Almeida, Comentário…, op. cit., p. 477, destaca a existência, neste tipo de sentenças, de um efeito preclusivo semelhante ao que ocorria nas anteriores sentenças de anulação de actos de indeferimento.
[10] O Contencioso…, op. cit., p. 393
[11] Comentário… , op. cit., p. 478.

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