segunda-feira, 4 de abril de 2011

A competência em primeira instância do STA

Um dos grandes objectivos da reforma do contencioso administrativo, ao nível particular da organização judiciária administrativa, foi a redistribuição das competências entre os tribunais administrativos. A esse propósito, pode ler-se nos trabalhos preparatórios da reforma do contencioso administrativo que se considera «fundamental, no âmbito da reforma do contencioso administrativo em curso, proceder à alteração da actual distribuição de competências, de forma a evoluir no sentido de um modelo idêntico ao das restantes jurisdições, em que a generalidade dos meios processuais deverão ter início nos tribunais administrativos de círculo (à excepção dos recursos de actos administrativos do Governo), garantindo um verdadeiro recurso de apelação para os tribunais de segunda instância e consagrando o Supremo Tribunal Administrativo como tribunal de revista.» (Ministério da Justiça, Reforma do Contencioso Administrativo, v. II, Coimbra Editora, 2003, p. 72). A lógica foi a da atribuição «à 1.ª instância do que é de 1.ª instância», aproximando a jurisdição administrativa da jurisdição cível, dignificando os tribunais centrais administrativos e o STA como verdadeiros tribunais de recurso.

Quando nos debruçamos sobre a solução encontrada para cumprir estes propósitos, vemos que o art. 24.º ETAF respeita precisamente à competência da secção de contencioso administrativo do STA, dividindo-se em dois números, um atinente à sua competência em primeira instância, outro à sua competência como tribunal de revista.
Ora, nem todos os processos têm início nos tribunais administrativos de círculo. Veja-se o art. 44.º ETAF, que delimita a competência dos TAC, com «excepção daqueles [processos] cuja competência, em 1.º grau de jurisdição, esteja reservada aos tribunais superiores e da apreciação dos pedidos que nestes processos sejam cumulados». A presenta análise debruça-se sobre a competência do STA em primeiro grau de jurisdição, como elemento subtractor da competência dos TAC.

A questão que se coloca é, pois, a de como interpretar o art. 24.º/1 ETAF, que elenca uma (vasta) série de casos em que o STA seria competente em primeira instância.

O art. 26.º do ETAF de 1984 (aprovado pelo Decreto-Lei 129/84) rezava assim:
(Competência da Secção pelas subsecções)
1 – Compete à Secção de Contencioso Administrativo, pelas suas subsecções, conhecer:
a)        Dos recursos de acórdãos da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo proferidos em 1.º grau de jurisdição;
b)       Dos recursos de decisões dos tribunais administrativos de círculo para cujo conhecimento não seja competente o Tribunal Central Administrativo;
c)        Dos recursos de actos administrativos ou em matéria administrativa praticados pelo Presidente da República, pela Assembleia da República e seu Presidente, pelo Governo, seus membros, Ministros da República e Provedor de Justiça, todos com excepção dos relativos ao funcionalismo público, pelos Presidentes do Tribunal Constitucional, Supremo Tribunal Administrativo e Tribunal de Contas, pelo Conselho Superior de Defesa Nacional, pelo Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais e seu Presidente, pelo Procurador-Geral da República, pelo Conselho Superior do Ministério Público e pela comissão de eleições prevista na Lei Orgânica do Ministério Público;
d)       Dos processos de contencioso relativo a eleições previstas no presente diploma;
e)        Dos conflitos de competência entre tribunais administrativos de círculo e a Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo;
f)        Dos conflitos de jurisdição entre a Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo e autoridades administrativas;
g)       Dos pedidos de suspensão da eficácia dos actos a que se refere a alínea c);
h)       Dos pedidos relativos à execução dos julgados;
i)         Dos pedidos de produção antecipada de prova formulados em processo nela pendente;
j)         Das matérias que lhe forem confiadas por lei.
2 – O disposto no número anterior não abrange as matérias respeitantes ao contencioso fiscal.

Abstenho-me de reproduzir a redacção actual do art. 24.º.
A competência do STA em primeira instância é aferida por três critérios: o do sujeito (redacção actual do art. 24.º/1, a), c) e e)); o do objecto (art. 24.º/1, b)) e um misto (art. 24.º/1, d) e f)).
Desde logo se vê que o elenco de sujeitos contra quem as acções devam ser propostas no STA diminuiu. Foram subtraídos à competência em primeira instância do STA os processos relativos a actos praticados pelos Ministros e Secretários de Estado. Como bem referem MÁRIO E RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA (Código do Processo nos Tribunais Administrativos Anotado, v. I, Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, Almedina, 2006, p. 82), tal opção que a anterior lei consagrava impedia a aplicação da cláusula da competência do tribunal da residência do autor no mais vasto sector de actividade da nossa Administração Pública, que é de produção ministerial, fazendo todo o sentido a sua eliminação.
As Regiões Autónomas e as autarquias locais ficam, naturalmente, de fora, correndo os processos relativos a actos por si praticados, em primeira instância, perante os tribunais administrativos de círculo.

Outra questão que parece importante é a de saber que actos das entidades referidas no art. 24.º ETAF estão sujeitos à competência em primeira instância do STA. É que a redacção anterior lhe reservava os «recursos de actos administrativos e em matéria administrativa», ao passo que a redacção actual utiliza a fórmula «acções ou omissões».
À primeira vista, parecem estar aqui abrangidos todos os processos relativos a actuações dessas entidades e não apenas, como antes, os processos impugnatórios dos respectivos actos administrativos., o que pode ter extrema relevância. Imagine-se uma acção que vise a declaração de ilegalidade de uma Resolução do Conselho de Ministros de carácter normativo ou a actuação ou omissão do Conselho de Ministros ou do PM. Se fizermos uma interpretação literal do art. 24.º, elas caberão na competência em primeira instância do STA, mas não parece que tal solução seja de acolher, devendo antes essas acções iniciar-se nos tribunais administrativos de círculo.
Assim entendeu também a Jurisprudência. No Ac. STA n.º 616/04, de 11/05/2005, pode ler-se que «tal normativo [o art.24.º] ao referir-se à competência deste STA para conhecer dos processos em matéria administrativa relativos a acções ou omissões das aludidas entidades não pode deixar de entender-se como querendo abranger apenas as impugnações das respectivas acções ou omissões, objecto das acções administrativas especiais, - art. 46º do CPTA - e não também quando se trate de acções de indemnização por actos ou omissões das mesmas entidades, que revestem a forma das acções administrativas comuns - art.37º do CPTA.».
Efectivamente, é isso que se conclui. As razões que levaram a retirar da competência dos TAC o conhecimento das acções e omissões das entidades referidas no art. 24.º/1, que se prenderam com razões de imparcialidade ou da especial dignidade reconhecida a certas entidades da Administração Central, que requerem que a impugnação das suas decisões ou omissões seja feita diante do STA, não poderão ser usadas para justificar a atribuição de competência além daquela que já se previa no anterior ETAF. O que se quis com a Reforma, ao nível da competência para julgamento em primeiro grau de jurisdição, foi retirar ao STA e não o contrário. Uma vez mais, «à primeira instância o que é da 1.ª instância».

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