domingo, 27 de março de 2011

"Teixeira dos Santos no consultório do Dr. Sexto Sentido. Sessão Final"

Sessão n.º 3: Consulta Final


3. Conflito de jurisdições?

Depois da breve análise do regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas e do âmbito da jurisdição administrativa, estamos em condições para responder ao problema enunciado em 1.

Afinal, qual é o tribunal competente para apreciar a questão dos danos recorrentes da actuação de um ente público quando está em causa um eventual concurso com um ente privado ou quando o lesado desconhece se o responsável pelo facto gerados de responsabilidade civil extracontratual foi o ente público ou o ente privado?

Em primeiro lugar cabe olhar para os termos em que o autor propõe a acção.

3.1.  A competência do tribunal

É unanimemente aceite pela doutrina jurisprudência que a competência do tribunal, tal como sucede com todos os pressupostos processuais, se afere pelo desenho dos termos do pedido formulado na petição inicial ignorando as excepções suscitadas pelo réu.

Cabe, a este propósito, relembrar os ensinamentos de Manuel de Andrade[1]:
Uma indicação de ordem geral acerca dos elementos determinantes da competência dos tribunais. São vários esses elementos também chamados índices de competência […]. Constam de várias normas que provêem a tal respeito: Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção – seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal – ensina Redenti – «afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)»; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor. E o que está certo para os elementos objectivos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes. A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos da pretensão. Mesmo quando a lei, não se atendo pura e simplesmente aos termos em que a acção está deduzida, requer a indagação duma circunstância extrínseca (valor ou situação dos bens pleiteados, domicílio do réu, lugar do contrato ou do facto ilícito, etc.), é através desses termos que há-de saber-se qual o ponto a indagar” .

Partindo do pressuposto que o autor desconhece quem foi o responsável pelos danos causados na sequência do acidente de viação - se foi o particular ou o ente público  - irá, muito provavelmente, formular um pedido subsidiário na petição inicial.

Nos  termos do art. 469.º, n.º1 C.P.C, estamos perante um pedido subsidiário quando ao autor apresenta um pedido, perante o tribunal, para ser tomado em consideração apenas no caso de o pedido anterior não proceder.

Sempre que o autor tem dúvidas acerca do êxito da sua pretensão, formula um pedido subsidiário: formula dois pedidos, colocando em primeiro lugar o da sua preferência. É este que o tribunal começa por analisar e decidir; o tribunal só se pronunciará sobre o segundo se julgar improcedente o primeiro[2].
Se o autor tem dúvidas acerca da existência de culpa do particular, então deduzirá um pedido subsidiário pedindo a condenação do ente público caso o tribunal conclua pela improcedência do primeiro pedido, ou seja, pela inexistência de responsabilidade do particular.

Imaginemos que a acção é proposta num tribunal comum. O autor coloca, em primeiro plano, o pedido de condenação do particular e, em segundo lugar e subsidiariamente, o pedido de condenação do ente público.

Será que podemos estar perante um caso de extensão de competência do tribunal ? Isto é, será que, caso o pedido de condenação do particular não proceda o tribunal comum pode, através da extensão de competência, condenar o ente público?

A competência que a lei reconhece ao tribunal da causa estende-se aos incidentes, à matéria da defesa suscitada pelo réu e às questões levantadas por via de pedidos reconvencioanis mas não já quando às questões prejudiciais[3].

A extensão da competência de um tribunal, enquanto incidência processual corresponde a um “alargamento da competência do mesmo, atribuída para certa questão, a outras que se encontram em conexão com ela (mas para as quais, tomadas isoladamente, autonomamente, o tribunal não teria competência)”[4], nos termos em que aparece regulada no CPC (v. artigos 96º a 98º do CPC), exclui, em princípio – em princípio, pois existe, como de seguida veremos, uma excepção (referimo-nos às questões prejudiciais, v. art. 97.º do CPC) – situações que afectem a competência material do tribunal.

Este é o regime próprio da extensão de competência para as “questões incidentais”, lato sensu: a decisão de uma questão incidental ou determinada por questão suscitada pelo réu como meio de defesa, que colida com a competência material do tribunal é sempre privada do efeito correspondente ao caso julgado material (v. art. 96.º, n.º 2 do CPC).

Este é, também, o regime relativo às “questões prejudiciais”, sendo que quanto a estas a possível decisão é sempre privada do efeito do caso julgado material, art. 97.º, n.º2, in fine.

Nos termos do n.º1, do art. 98.º do C.P.C, a questão da impossibilidade de extensão da competência que implique ofensa às regras da distribuição desta em função da matéria também se aplica no caso de estarmos perante questões reconvencionais uma vez que  o tribunal é competente para as questões deduzidas por via da reconvenção desde que tenha competência para elas em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.  Se não tiver, o reconvindo será absolvido da instância.

Fora estes caos, não há qualquer previsão legal que permita o alargamento da competência do tribunal a questões para as quais, tomadas isoladamente, esse tribunal não disporia de competência[5].

Não se esqueça que,  mesmo nos casos de questões incidentais, prejudiciais e reconvencionais ( art. 96.º  - 98.º C.P.C), a competência em razão da matéria sempre é ressalvada a possibilidade de extensão da competência.

A pretensão de formação de caso julgado material (isto é,  do caso julgado cujo efeito se projecta para além do processo em que é gerado) é sempre pressuposta pela formulação de um pedido subsidiário.

O cerne da questão reside na articulação funcional da teleologia das regras gerais e específicas relativas à determinação da competência - previstas nos art. 61º-  95º do CPC - e das regras respeitantes à extensão e modificação da competência previstas nos art. 96º - 100º do C.P.C.

Segundo José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, “ as disposições dos artigos anteriores [ art. 61º - 95º] estabelecem a competência jurisdicional legal, como tal alheia, na sua origem, à vontade das partes, determinando o tribunal que deve conhecer a acção com base em certos factores atributivos, de entre os quais avulta o objecto do processo tal como é apresentado pelo autor no momento da respectiva propositura.  No entanto, não só é frequente o autor e o réu suscitarem, posteriormente, questões que, consideradas autonomamente, podem extravasar a competência do tribunal, mas cujo conhecimento, por elas estarem mais ou menos directamente relacionadas com o objecto da causa, é relevante para a acção ou para a defesa, como também, quando isso não comprometa o interesse público na administração da justiça, há que atender ao interesse das partes na determinação do foro competente para o julgamento da acção.  Respondendo a estas preocupações, os artigos 96º a 98º tratam da extensão da competência legal do tribunal, por forma a permitir que este se pronuncie sobre questões incidentais (artigo 96º), prejudiciais (artigo 97º) e reconvencionais (artigo 98º), e os dois artigos seguintes da modificação dessa competência por vontade das partes, nos âmbitos internacionais (artigo 99º) e interno (artigo 100º)[6]”.

Se o autor formula um pedido subsidiário pretendendo a condenação de alguém( neste caso a condenação de um ente público) e, com ela, pretendendo obter caso julgado material, leva a que, nos termos do art. 96.º, n.º2, in fine do C.P.C o tribunal judicial seja incompetente para apreciar tal pedido uma vez que é incompetente em razão da matéria.

Com isto pretendemos dizer que, ao ser formulado um pedido subsidiário, haja um controlo da competência do tribunal que irá apreciar esse pedido que ultrapassa o mero desenho da lide configurada pelo autor.

A competência material, uma vez que envolve o interesse público na administração da justiça, faz parte do núcleo intangível da cumulação de pedidos( v. art. 470.º, n.º1 do C.P.C).

Se o autor intentou a acção num tribunal comum e fez um pedido subsidiário pedindo a condenação da Administração, a formulação desse pedido subsidiário implicaria que esse tribunal  - comum  - se colocasse na posição de decisor de uma questão reservada à jurisdição administrativa. Seria uma extensão de competência da jurisdição comum pois estar-se-ia perante um alargamento da competência do tribunal, atribuída para certa questão, a outras que se encontram em conexão com ela (mas para as quais, tomadas isoladamente, autonomamente, o tribunal não teria competência), sendo que tal extensão, nas condições que se colocam (através da formulação de um pedido subsidiário), extravasaria dos pressupostos possibilitadores dessa extensão de competência.

Deste modo, o tribunal comum é incompetente para considerar o pedido subsidiário de condenação do ente público.  A consideração do pedido subsidiário formulado contra o ente público e o chamamento deste em função da aceitação desse pedido, traduzir-se-ia na ofensa, por parte do Tribunal das regras de competência material.

A solução para o problema assim criado, não pode ser outra que a absolvição da instância do ente público.

3.2.  Litisconsórcio (necessário ou voluntário)?

Mas será que tal solução não coloca em causa o efeito útil visado pela sentença?

Vejamos o seguinte exemplo:

O tribunal comum considera o ente público  parte ilegítima na acção. O autor obtiver uma sentença que julga provado que quem teve a culpa do acidente foi  motorista do Ministro das Finanças. Ora,  não sendo o ente público parte na acção, não pode ser condenado no pedido.

Se, de seguida, o autor obtiver uma sentença do tribunal administrativo que julgue provado que quem tinha sido o responsável pelo acidente de viação foi o particular, então este não poderá ser condenado no pedido uma vez que não poderá ser, novamente, parte na acção.

Ou seja, será que distribuir as partes em dois processos diferentes não prejudicará o efeito útil que se visa com a sentença contrariando o próprio art. 28.º, n.º2 do C.P.C?

Contrariamente ao que acontece na figura da coligação( v. art. 31.º-A, do C.P.C), a incompetência em razão da matéria não é um obstáculo à concretização do litisconsórcio( v. art. 27.º e 28.º do C.P.C).
Saliente-se que as regras respeitantes à legitimidade das partes inserem-se  no Livro I; pelo contrário, as regras da competência do tribunal inserem-se no Livro II.

O legislador apenas criou essa excepção à admissibilidade da coligação mas não criou qualquer excepção  relativamente ao litisconsórcio porque, nesse caso, pretende que a causa seja submetida ao mesmo tribunal. Ou seja, o legislador afastou a possibilidade de coligação sempre que colida com as regras da competência material do tribunal. Pelo contrário, não o fez, expressamente,  quanto ao litisconsórcio.

Por isso, não é da competência  do tribunal que podemos determinar a admissibilidade do litisconsórcio.
Todavia, o facto de não saber, a priori, qual dos dois foi o culpado no acidente implica que a resolução desta situação seja determinada pela forma como o autor a peticiona.
Nos termos do art. 28.º, n.º1 do C.P.C não há norma legal que imponha uma situação de litisconsórcio necessário nesta situação.

Se o autor formula um pedido subsidiário, a situação, tal como configurada pelo autor, corresponde a um caso de litisconsórcio alternativo o qual pertence à espécie de litisconsórcio voluntário[7].

Num caso semelhante, o Tribunal de Conflitos[8] entendeu que “não se pode afirmar a inconveniência de poderem ser proferidas decisões de mérito por tribunais com competências materiais distintas, pois os AA. formularam pedidos de indemnização contra entidades públicas e privadas e os critérios legais para as respectivas responsabilizações têm diferenças substanciais ... mas também no conceito de culpa do serviço, apenas aplicável à responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas públicas, que é influenciado por «referências objectivas relacionadas com a função dos seus órgãos» e se reconduz a uma ampliação das possibilidades de imputação de culpa à Administração, o que leva a concluir que, em relação a ela, «não vale inteiramente o critério abstracto e típico de actuação do bom pai de família a que se refere a 1ª parte do nº 2, do artigo 487º do Código Civil»”.

Ou seja, do exposto só pode resultar que o regime do litisconsórcio voluntário  não se sobrepõe às normas de competência material.

Como supra referido, as normas sobre a competência em razão da matéria pertencem ao grupo das normas a que a lei processual atribui um especial valor imperativo, sujeitando a sua inobservância ao regime de incompetência absoluta, em que o interesse público no seu acatamento é muito mais fortemente tutelado do que as normas sob incompetência relativa.

Além do mais, se a incompetência em razão da matéria impede a coligação de autores ou réus (art. 31º do CPC), a formulação de pedidos subsidiários (art. 469º, nº 2), a cumulação de pedidos (art. 470º, nº 1), a apensação de acções propostas separadamente e que pudessem ser reunidas num único processo (art. 275º, nº 1) e a extensão da competência do tribunal às questões deduzidas por via de reconvenção (art. 98º, nº 1) não será de admitir a apreciação de um pedido subsidiário por um tribunal comum contra um ente público, para o qual apenas tem competência um tribunal administrativo.

Com isto, parece-nos que os  inconvenientes de ordem prática da eventual necessidade de propositura de duas acções não poderão sobrepor-se à imperatividade das normas sobre a  competência em razão da matéria.

3.3.  Conclusão

A competência do tribunal é  determina pelo pedido do autor. Por isso, está em apenas em causa o modo como o pedido é formulado pelo autor.

Não só o tribunal comum é incompetente em razão da matéria para apreciar um pedido de condenação de um ente público pelos danos causados na sequencia de um acidente de viação, como o tribunal administrativo é incompetente razão da matéria para apreciar um pedido de condenação de um particular, na sequência de um acidente de viação, deduzido pelo autor.

Tudo dependerá do modo como o pedido é formulado.

Se o autor pretender intentar a acção no âmbito da jurisdição comum, o tribunal só será competente para apreciar o pedido de condenação contra o particular. Caso deduza um pedido de condenação do ente público, a solução não poderá ser outra a não ser a da absolvição do réu da instância.

Se, pelo contrário, pretender intentar a acção no âmbito da jurisdição administrativa, o tribunal administrativo apenas poderá apreciar o litígio no respeitante ao ente público. A existência/não de responsabilidade do particular só pode ser apreciada pela jurisdição comum.


Senhor Ministro, terminámos este conjunto de Sessões.
Tendo em conta a especificidade do seu caso, são € 250/ sessão.  Todavia, se desejar recibo, são mais € 50/sessão.” – diz, desembaraçadamente, o Dr. Sexto Sentido.

Teixeira dos Santos, hesitante, passa um cheque no valor de € X...

É a estratégia do autor que determinará a solução de cada caso...


[1] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, pp. 90-91.
[2]  Jorge Pais do Amaral, Direito Processual Civil, Almedina, 2009, p. 180.
[3] Remédio Marques, A acção declarativa à luz do código revisto, Coimbra Editora, 2009, p. 327.
[4] João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1º vol., revisto e actualizado,  “Obras Completas Professor Doutor João de Castro Mendes”, Lisboa, 1986, p. 546.
[5] Idem.
[6] Código de Processo Civil anotado, vol. 1º, 2ª ed., Coimbra, 2008, p. 179. Cfr. Remédio Marques, op. cit. pp. 199-200.
[7] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex.,pp. 155 e 167.
[8] Ac. Tribunal de Conflitos de 2004.06.29, Processo n.º 1/01. 

sábado, 26 de março de 2011

Iniciativa processual

Da infância difícil pela qual passou o Contencioso Administrativo, temos com a reforma de 2004 a institucionalização de uma jurisdição administrativa com matéria própria: litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.
A iniciativa do processo pode partir de particulares, pessoas singulares ou colectivas, mas também de iniciativa popular, tanto individual como colectiva para defesa de bens e interesses comunitários.  
Do mesmo modo, claro está, as entidades e órgãos administrativos serão partes activas e passivas no processo.
Por outras palavras, as relações jurídicas administrativas abrangem “para efeitos de delimitação do âmbito material da jurisdição administrativa, (…) a generalidade das relações jurídicas externa ou intersubjectivas de carácter administrativo, seja as que se estabeleçam entre os particulares e os entes administrativos, seja as que ocorram entre sujeitos administrativos” (1).
É de especial interesse, o papel do Ministério Público na promoção do processo nos casos em que a lei expressamente o preveja. De facto, o MP deve aqui respeitar o princípio da legalidade e a sua intervenção restringe-se aos factos tipificados ou quando uma entidade administrativa sem legitimidade processual que requeira a sua intervenção (art. 9º/2 CPTA). O artigo 68º/1 c) CPTA expressamente o refere: o dever de praticar o acto resulta directamente da lei e estão em causa a ofensa de direitos fundamentais, de interesse público especialmente relevante ou de outros valores mencionados no artigo 9º/2. O art. 40º/2 c) CPTA prevê a legitimidade do Ministério Público em acções relativas a contratos sobre cláusulas cujo incumprimento “possa afectar um interesse público especialmente relevante”. Aliás, o Ministério Público terá ainda a legitimidade para a impugnação de normas e declaração de ilegalidade por omissão (art. 72º e ss CPTA). No art. 104º/2 é lhe concedido o pedido de intimação para prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões. Tendo sido requerida providência cautelar, tal como as outras partes no processo, o Ministério Público pode também pedir a sua revogação, alteração ou substituição por alteração das circunstâncias inicialmente existentes (art. 124º/1).
Aliás, no artigo 130º/3, ao contrário dos outros requerentes, o Ministério Publico, na acção de declaração de ilegalidade da norma, quando requeira a suspensão da eficácia das normas, não terá de demonstrar que a aplicação da norma em causa foi recusada por qualquer tribunal em três casos concretos.
Contudo, fora desses casos, a propositura da acção vai depender da análise sobre se está em causa a defesa da legalidade, a salvaguarda de bens e direitos comunitários, para além da tutela de direitos, liberdades e garantias e prossecução de interesses públicos. Aliás, quando existam dúvidas quanto as factos, entende-se que o Ministério Público não deverá intervir se não existirem razões fundadas quanto à ilegalidade grave de um acto ou norma.
Fica demonstrado, que o Ministério Público enquanto o órgão do sistema judicial nacional encarregado de representar o Estado, exercer a acção penal, defender a legalidade democrática e os interesses que a lei determinar, tem a mesma legitimidade que os outros sujeitos que se dirijam aos tribunais administrativos para dimirir os conflitos do âmbito das relações internas e externas da Administração.
Um dos princípios que vigora agora, ao contrário do estipulado nos primórdios do Contencioso Administrativo, é o princípio da igualdade das partes. O tribunal, enquanto órgão independente, vai assegurar a tutela efectiva da igualdade das partes, sendo-lhes atribuída as mesmas faculdades e uso dos meios de defesa, e a aplicação das mesmas cominações ou sanções processuais.


(1)  ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa (Lições), Almedina, 2011, pág. 53

sexta-feira, 25 de março de 2011

"Teixeira dos Santos no consultório do Dr. Sexto Sentido. A 2a sessão"

- Relaxe Senhor Ministro.... vamos começar mais uma sessão.

Sessão n.º 2: Âmbito da jurisdição administrativa em matéria de responsabilidade civil extracontratual

2.1. Jurisdição administrativa

Após a Revisão Constitucional de 1997  - na qual se explicitou um verdadeiro direito à tutela jurisdicional efectiva dos particulares perante a Administração Pública( v. art. 268.º, n.º4 e 5 C.R.P.) -  o legislador ordinário alterou, radicalmente, o panorama da justiça administrativa.

Relativamente ao âmbito da jurisdição administrativa, a reforma do contencioso administrativo[1], implicou, essencialmente, duas alterações.

Por um lado, os tribunais administrativos passaram a ser competentes para dirimir todas as questões da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas.

Por outro, os tribunais administrativos passaram também a ser competentes para dirimir litígios emergentes de contratos celebrados pelo Estado ou outras entidades públicas que a lei especificamente submeta/admita a submissão a um procedimento pré-contratual de direito público, cujo regime seja regulado por normas de direito público ou que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.

No âmbito da  responsabilidade civil e dos contratos, a proposta de lei do Governo à Assembleia da República baseava-se num critério objectivo da natureza da entidade demanda. Assim, sempre que um litígio envolvesse uma entidade pública – por lhe ser imputado o facto gerador do dano ou por ser uma das partes do contrato – a competência para a apreciação do referido litígio era da jurisdição administrativa[2].

Os tribunais administrativos e fiscais passariam a ser os tribunais materialmente competentes para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil e de contratos que envolvessem a Administração sendo irrelevante, para o caso, o facto de os actos serem de gestão pública ou de gestão privada ou o facto de os contratos estarem submetidos a um regime de direito privado ou a uma regime de direito público.

Da leitura das alíneas g), h), i), do art. 4.º do ETAF resulta um regime de unidade jurisdicional - tanto no que respeita ao contencioso da responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública (em virtude do abandono da falta distinção entre gestão pública e gestão privada, como critério de determinação da competência do tribunal ) -  como também, mais amplamente, no que se refere ao contencioso de toda a responsabilidade civil pública que agora passa a ser da competência dos tribunais administrativos[3].

Como refere Vasco Pereira da Silva[4], as actuações administrativas tendem a surgir unificadas em razão da ideia ( material) de função administrativa, e não da regra formal do exercício do poder. É a dimensão  - material e teleológica – da satisfação de necessidades colectivas através de formas públicas e privadas que justifica um tratamento legislativo e jurisdicional unitário.

Foi essa a solução, em matéria de responsabilidade civil extracontratual, que o art. 4.º ETAF consagrou[5].

O nosso ordenamento jurídico delimita a competência dos tribunais administrativos e fiscais em razão da natureza das relações jurídicas em causa( v. art. 212.º, n.º3, C.R.P. e art. 1.º, n.º1, do ETAF), completando depois essa cláusula geral e aberta( art. 1.º, n.º1 do ETAF) com uma enumeração exemplificativa que concretiza os tipos de situações jurídicas susceptíveis de ser enquadradas no Contencioso Administrativo.

No  art. 4.º, n.º1 enumera-se, a título exemplificativo, um critério mais amplo, constante da cláusula geral de qualificação, que delimita o âmbito da jurisdição administrativa em razão da natureza da relação jurídica[6]

A existência de uma  cláusula geral de longo alcance combinada com uma enumeração exemplificativa muito extensa levou a que se consagrasse, em termos amplos, a competência dos tribunais administrativos e fiscais  para todas as ligações jurídicas correspondentes aos exercício da função administrativa[7].

 Uma vez que a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa é feita através da adopção do critério da relação jurídica, possibilita-se a  ponte entre o direito substantivo e o processual, abrindo o contencioso às novas realidades jurídicas decorrentes da modernas Administração Prestadores e Infra-estrutural[8].

2.2. Responsabilidade civil extracontratual

Como ponto de partida, podemos dizer que os tribunais administrativos são competentes para dirimir todas as questões de responsabilidade civil extracontratual que envolvam pessoas colectivas de direito público.

Podem estar em causa danos que resultam do exercício da função administrativa mas também danos resultantes do exercício das funções legislativas e judiciais.

O ETAF abrange ainda os casos de responsabilidade civil extracontratual causados por titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos – incluindo acções de regresso contra si intentadas pelas entidades públicas às quais prestam serviços[9] ( v. art. 4.º, n.º1, al. g), h) do ETAF).

Como supra referimos, deixou de ser relevante para efeitos de determinação da jurisdição competente para apreciar o litigio, o facto de os actos serem praticados no âmbito de um exercício de gestão pública ou gestão privada.

A jurisdição administrativa é competente para apreciar as questões de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da questão de saber se essa responsabilidade resulta de uma actuação de gestão pública ou de uma actuação de gestão privada. A distinção deixa de ser relevante para efeito de determinar a jurisdição competentes: em ambos casos é a jurisdição administrativa.

O ETAF não faz qualquer opção de natureza substantiva dirigida a afastar a existência, no plano substantivo, de regimes diferenciados de responsabilidade da Administração. Limita-se apenas a abandonar esse tipo de distinções renunciando utilizá-lo como critério de delimitação no âmbito das jurisdições.

A jurisdição administrativa é competente para apreciar as questões de responsabilidade emergentes do exercício da função legislativa tendo em conta que ainda envolve  a aplicação de um regime de direito público, respeitante a questões relacionadas com o exercício de poderes públicos.[10] É ainda competente para apreciar as questões de responsabilidade resultantes do – mau – funcionamento da administração da justiça.

Exclui-se, todavia, a apreciação das questões por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição bem como as acções de regresso contra magistrados que daí decorrem: art. 4.º, n.º3, al. a) ETAF[11].

Como refere Mário Aroso de Almeida, o facto de a al. g), do n.º1 do art. 4.º do ETAF não fazer qualquer referencia à função administrativa tem o propósito de incluir toda a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, resulte ela do exercício de qualquer das funções estaduais.  Deste modo, o autor entende que também se compreendem no âmbito do preceito as acções em que  se faça valer a responsabilidade do Estado peço exercício da função política[12].

Estando em causa danos emergente da actuação da Administração Pública não é relevante, se essa actuação era/não desenvolvida no exercício da função administrativa, prosseguindo fins públicos[13]A jurisdição administrativa é  competente para apreciar todas as questões de responsabilidade civil extracontratual emergentes das condutas dos seus órgãos, funcionários ou agentes das pessoas colectivas de direito público que integram a Administração Pública, independentemente de saber se essa responsabilidade emerge de uma actuação de gestão pública o uma actuação de gestão privada.

Note-se que a al. i ), do n.º1 do art. 4.º prevê a competência da jurisdição administrativa para apreciar as questões de responsabilidade civil extracontratual de entidades privadas e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, nos casos em que o art. 1.º, n.º 5 do RRCEE as submete a este regime, isto é, sempre que a responsabilidade resulte de acções ou omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de Direito Administrativo. Nestes casos, as actuações que exprimem o exercício de prerrogativas de poder público ou que se rege por normas de direito público ficam abrangidas pela jurisdição administrativa.

2.3. Litígios excluídos do âmbito da jurisdição administrativa

Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal. Por isso – salvo derrogação pontual legalmente prevista -  apreciação de litígios de matéria civil e criminal, que envolvam aplicação de normas de direito privado e de direito criminal, ficam excluídos do âmbito da jurisdição administrativa.

Ficam também excluídos do âmbito da jurisdição administrativa os poderes que a C.R.P. e a LTC conferem ao Tribunal de Contas em matéria de controlo jurisdicional da observância da legalidade financeira da actividade administrativa.

Existem ainda disposições pontuais que impõe aos tribunais judiciais o julgamento de certas matérias jurídico – administrativas[14].

Nos n.º2 e 3 do art. 4.º estão situações que se encontram excluídos do âmbito da jurisdição administrativa.
Todavia, as exclusões previstas nos dois numerus são distintas.

Como salienta Mário Aroso de Almeida[15], o n.º2 faz uma delimitação negativa da jurisdição administrativa pois limita-se a explicitar o critério do art. 1.º, n.º1 identificando tipos de litígios que se encontram excluídos do âmbito da jurisdição administrativa porque não têm natureza administrativa.

O n.º3  já introduz verdadeiras restrições ao critério do art. 1.º, n.º1 excluindo do âmbito da jurisdição administrativa tipos de litígios que seria de entender que nele estariam incluídos.

-Senhor Ministro, está a fazer muitos progressos! Em princípio, na próxima sessão o seu problema ficará resolvido.

Até amanhã! 

Continua...

Joana Andrade Nunes


[1] A expressão corresponde à entrada em vigor da Lei n.º 12/2001, de 19 de Fevereiro( Novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) e da Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro( Novo Código de Processo nos Tribunais Administrativos).
[2] Gonçalves Lopes, Contribuição para uma apreciação critica do contencioso administrativo português, Verbo Jurídico.
[3] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2009, pp. 488 ss.
[4] Vasco Pereira da Silva, op. cit.,p. 521.
[5] Sai fora do âmbito deste trabalho a responsabilidade civil contratual. Todavia, salienta-se que, no tocante aos litígios dos contratos, o ETAF continua a apostar numa bipartição de competências entre a jurisdição administrativa e a jurisdição comum. Para tal, o ETAF formula critérios de qualificação dos contratos. Estando em causa um procedimento pré-contratual, a jurisdição administrativa é competente para apreciar as matérias relativas à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais exista lei que os submeta a um procedimento pré-contratual de direito administrativos( art. 4.º, n.º1, al. e) do ETAF). Segundo o critério substantivo, a jurisdição administrativa é competente para apreciar todas as questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objectivo passível de acto administrativo, de contratos especificamente acerca dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público( art. 4.º, n.º1, al. f) do ETAF). Nos termos da al. b), do n.º1, art. 4.º do ETAF, os tribunais administrativos e fiscais são ainda competentes para apreciar a invalidade de quaisquer contratos – independente de serem administrativos ou de direito privado – que directamente resultem da invalidade do acto administrativo no qual se funda a respectiva celebração.
[6] Vasco Pereira da Silva, op. cit., p. 491.
[7] Vasco Pereira da Silva, op. cit., p.489.
[8] idem.
[9] Diogo Freitas do Amaral/ Mário Aroso de Almeida, Grandes Linhas da reforma do contencioso administrativo, Almedina, 2007, p. 36.
[10] Da exposição do ETAF.
[11] V. Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 21 de Março de 2006, no qual se defende que só estão excluídas as acções em que a causa de pedir seja um facto ilícito imputado a um juiz dos tribunais judiciais no exercício da sua função de julgar e não qualquer outro facto que não configure erro judiciário.
[12] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2010, p.169, nota 101.
Cfr., Vieira de Andrade, Justiça Administrativa, Almedina, p.117 onde se defende que os casos de responsabilidade pelo exercício da função politica saem fora do âmbito da jurisdição administrativa uma vez que caberia aos tribunais judiciais, em exclusivo, apurar a responsabilidade do Estado.
[13] Mário Aroso de Almeida, op. cit., p. 169.
[14] Por exemplo, o regime do ilícito de mera ordenação social que, não obstante estar em causa a impugnação de uma decisão administrativa de aplicação de coimas, sai fora do âmbito da jurisdição administrativa. O mesmo acontece relativamente ao regime da fixação de indemnizações devidas por expropriações ou, por ex., a impugnação de decisões da Autoridade da Concorrência.
[15] Mário Aroso de Almeida, op. cit., p. 182.