quinta-feira, 21 de abril de 2011

A Reforma do Contencioso Administrativo: O Âmbito da Jurisdição Administrativa no Novo ETAF

1. Introdução

            A Constituição de 1976, garantindo aos administrados uma tutela efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos nos n.º 4 e 5 do seu artigo 268.º, rompe com aquele que vinha sendo o modelo de Contencioso Administrativo da Constituição de 1933 (como diz Vasco Pereira da Silva, “dependente da Administração e com um controlo limitado e objectivo[1]) e insere Portugal no “movimento de constitucionalização” do Contencioso Administrativo que vinha já avançando pela Europa desde o início da década de 70 do século passado. Porém, como bem ilustram as palavras de Jorge Miranda, “O Direito Administrativo não se reduz a um mero Direito constitucional concretizado, sem desenvolvimento próprio e sem autonomia científico-cultural. Tanto se encontram normas constitucionais logo projectadas em normas administrativas como se verificam desfasamentos consideráveis, apenas a longo prazo corrigidos.”[2]. É, então, esta demora entre a publicação da nova Constituição e a reacção do legislador ordinário ao nível do Direito Administrativo que motiva as críticas da doutrina. As críticas – pelo menos as relativas à reforma em si, não ao seu conteúdo – cessam com a Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro e com a Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro que aprovam o novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Tributários (ETAF) e o Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), respectivamente.
            Relativamente ao ETAF, houve duas alterações substanciais: a primeira, atinente ao âmbito da jurisdição administrativa, e a segunda, atinente às competências dos tribunais administrativos. Ao longo das próximas linhas, e para que este comentário não se torne demasiado extenso e enfadonho, examinarei somente as alterações que o ETAF operou ao nível do âmbito da jurisdição administrativa.
           
2. Jurisdição administrativa: âmbito

2.1  O alcance da reserva constitucional da jurisdição administrativa

A consagração no texto constitucional, com a revisão de 1989, da jurisdição administrativa como o complexo de tribunais incumbidos de “dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas” (veja-se o artigo 212.º CRP) elevou-a a um patamar diferente daquele que até então lhe correspondia, colocando questões, no plano da delimitação do âmbito da jurisdição administrativa, às quais a reforma do contencioso administrativo veio dar resposta.
Esta “constitucionalização” consubstancia a “emancipação” da justiça administrativa, colocando-a em posição de paridade com a jurisdição dos tribunais judiciais (apontando nessa direcção os artigos 210.º, 212.º e 217.º, n.º 1 e 2 CRP) e deixando para trás a concepção do Estado Novo, consentânea com o que ficou já dito supra, que colocava os tribunais administrativos fora do Poder Judicial, integrando-os antes na Administração Pública como órgãos independentes. Aliás, bem ilustrativo desta herança é o artigo 4.º do ETAF de 1984 que, no fundo, encerrava uma cláusula de competência residual incumbindo os tribunais administrativos de decidir das matérias cuja apreciação não fosse atribuída por lei à competência de outros tribunais.[3]
São, assim, em traços muito gerais, consequências desta “constitucionalização” ao nível do âmbito da jurisdição administrativa: a redefinição dos critérios de delimitação do âmbito da jurisdição administrativa; e a exigência de criação pelo Estado das condições necessárias ao progressivo alargamento do âmbito da jurisdição administrativa. Escusado será dizer que foram estas consequências que definiram o caminho que o legislador ordinário haveria de tomar ao traçar as grandes linhas de força do ETAF.
Analisemos agora a delimitação legal do âmbito da jurisdição administrativa em traços largos e, pelas dificuldades que levanta, em mais pormenor o âmbito da jurisdição administrativa em matéria de responsabilidade civil e de contratos.

2.2  A delimitação legal do âmbito da jurisdição administrativa

O ETAF começa por reafirmar, no seu artigo 1.º, a cláusula geral estabelecida na Constituição e, de seguida, no seu artigo 4.º procede à enumeração de domínios em que os tribunais administrativos são competentes. De referir é que esta enumeração é exemplificativa, utilizando-se alguns conceitos que carecem de precisão e não estando, claro, prejudicada a existência de legislação especial divergente. O n.º 1 do referido artigo encerra em si uma enumeração positiva (procede à atribuição de competências) e os n.º 2 e 3 a uma enumeração negativa (delimita o âmbito da jurisdição administrativa)[4].
O novo ETAF procede no artigo 4.º a um alargamento do âmbito da jurisdição administrativa, apresentando-se como novidades as alíneas c), l) e n) do n.º 1 que consagram, respectivamente: a fiscalização da legalidade dos actos materialmente administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública (o que inclui, portanto, a generalidade dos actos materialmente administrativos praticados pelos tribunais judiciais); os processos intentados contra entidades públicas que se dirijam a promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial de infracções cometidas contra valores e bens constitucionalmente protegidos como os enumerados na referida alínea; e a competência dos tribunais administrativos para os processos de execução das sentenças por si próprios proferidas. Ademais, embora não resulte directamente do articulado do ETAF mas, sim, da alteração que o artigo 5.º ETAF introduz na redacção dos artigos 74.º e 77.º do Código das Expropriações, o âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos é ainda ampliado ao poder de proceder à adjudicação de bem que tenha sido expropriado, quando haja lugar à sua reversão.[5]
Passemos agora às matérias que mais dificuldades levantam: a responsabilidade civil e os contratos.

2.2.1  Dificuldades de delimitação do âmbito da jurisdição administrativa em matéria de responsabilidade civil e de contratos

Nas propostas de lei que o Governo apresentou à Assembleia da República, esteve subjacente o objectivo de acabar com a dificuldade de delimitação do âmbito da jurisdição administrativa em matéria de responsabilidade civil e de contratos, baseando-se as propostas no critério objectivo da natureza da entidade demandada (passariam a pertencer ao âmbito da jurisdição administrativa todas as questões que envolvessem pessoas colectivas de direito público, independentemente do regime jurídico por que se regessem as matérias em litígio). Contudo, o artigo 4.º ETAF só veio a consagrar este critério no domínio da responsabilidade civil extracontratual[6].
Relativamente a esta última refira-se o artigo 4.º, n.º 1, alíneas g) e h) ETAF que consagram o critério supra enunciado e, por outro lado, o n.º 3 deste mesmo artigo que exclui do âmbito da jurisdição administrativa a apreciação das questões de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das acções de regresso contra magistrados que daí decorram. Uma nota apenas para dizer que no que se refere às pessoas colectivas de direito privado, para o efeito de determinar se um litígio é da competência dos tribunais administrativos ou dos tribunais comuns (pelo disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea i) ETAF), continua a ser relevante saber se o facto constitutivo da responsabilidade se encontra ou não submetido à aplicação de um regime específico de direito público.
Quanto às relações contratuais, por terem surgido algumas dúvidas quanto à eventual desconformidade da solução apresentada pelo Governo com o artigo 212.º, n.º 3 CRP, o legislador decidiu identificar com maior grau de precisão do que até aqui acontecia o universo dos contratos cujo contencioso ficaria sujeito aos tribunais administrativos. Utilizou-se um duplo critério: o critério do procedimento pré-contratual, consagrado no artigo 4, n.º 1, alínea e) ETAF; e o critério do regime substantivo, consagrado no artigo 4.º, n.º 1, alínea f) ETAF.
Por último, é de referir que por força do art. 4.º, n.º 1, al. b) ETAF cabe aos tribunais administrativos apreciar a invalidade de quaisquer contratos (sejam eles administrativos ou de direito privado) cuja invalidade directamente resulte do acto administrativo em que se tenha baseado a respectiva celebração.

2.3  Desvios legais

Além do ETAF, e apenas a título de curiosidade final, há ainda que mencionar que existe um conjunto de leis especiais que atribuem intencionalmente a competência para o julgamento de questões de direito administrativo a tribunais não administrativos. Referimo-nos aqui, por exemplo, a leis que atribuem tal competência ao Tribunal Constitucional (v.g. Lei n.º 28/1982, de 15 de Novembro), ao Tribunal de Contas (v.g. Lei n.º 98/1997, de 26 de Agosto) ou aos tribunais judiciais (v.g. Decreto-Lei n.º 433/1982, de 27 de Outubro)[7].

Raquel Maia Arêde (N.º 17512)
4.º Ano, Subturma 6 


[1] Pereira da Silva, Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise: Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo. Coimbra: Almedina, 2009 (2.ª edição actualizada), p.182.
[2] Miranda, Jorge, Uma Perspectiva Constitucional da Reforma do Contencioso Administrativo (Separata de Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, volume V). Lisboa: Almedina, 2003, p. 35.
[3] Freitas do Amaral, Diogo e Mário Aroso de Almeida, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo. Coimbra: Almedina, 2004 (3.ª edição), pp. 25-27.
[4] Vieira de Andrade, José Carlos, A Justiça Administrativa (Lições). Coimbra: Almedina, 2009, p. 109.
[5] Freitas do Amaral, Diogo e Mário Aroso de Almeida, Grandes Linhas…, pp. 30-34.
[6] Freitas do Amaral, Diogo e Mário Aroso de Almeida, Grandes Linhas…, pp. 34-45.
[7] Vieira de Andrade, José Carlos, A Justiça…, pp. 133-135.

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