domingo, 27 de março de 2011

"Teixeira dos Santos no consultório do Dr. Sexto Sentido. Sessão Final"

Sessão n.º 3: Consulta Final


3. Conflito de jurisdições?

Depois da breve análise do regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas e do âmbito da jurisdição administrativa, estamos em condições para responder ao problema enunciado em 1.

Afinal, qual é o tribunal competente para apreciar a questão dos danos recorrentes da actuação de um ente público quando está em causa um eventual concurso com um ente privado ou quando o lesado desconhece se o responsável pelo facto gerados de responsabilidade civil extracontratual foi o ente público ou o ente privado?

Em primeiro lugar cabe olhar para os termos em que o autor propõe a acção.

3.1.  A competência do tribunal

É unanimemente aceite pela doutrina jurisprudência que a competência do tribunal, tal como sucede com todos os pressupostos processuais, se afere pelo desenho dos termos do pedido formulado na petição inicial ignorando as excepções suscitadas pelo réu.

Cabe, a este propósito, relembrar os ensinamentos de Manuel de Andrade[1]:
Uma indicação de ordem geral acerca dos elementos determinantes da competência dos tribunais. São vários esses elementos também chamados índices de competência […]. Constam de várias normas que provêem a tal respeito: Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção – seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal – ensina Redenti – «afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)»; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor. E o que está certo para os elementos objectivos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes. A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos da pretensão. Mesmo quando a lei, não se atendo pura e simplesmente aos termos em que a acção está deduzida, requer a indagação duma circunstância extrínseca (valor ou situação dos bens pleiteados, domicílio do réu, lugar do contrato ou do facto ilícito, etc.), é através desses termos que há-de saber-se qual o ponto a indagar” .

Partindo do pressuposto que o autor desconhece quem foi o responsável pelos danos causados na sequência do acidente de viação - se foi o particular ou o ente público  - irá, muito provavelmente, formular um pedido subsidiário na petição inicial.

Nos  termos do art. 469.º, n.º1 C.P.C, estamos perante um pedido subsidiário quando ao autor apresenta um pedido, perante o tribunal, para ser tomado em consideração apenas no caso de o pedido anterior não proceder.

Sempre que o autor tem dúvidas acerca do êxito da sua pretensão, formula um pedido subsidiário: formula dois pedidos, colocando em primeiro lugar o da sua preferência. É este que o tribunal começa por analisar e decidir; o tribunal só se pronunciará sobre o segundo se julgar improcedente o primeiro[2].
Se o autor tem dúvidas acerca da existência de culpa do particular, então deduzirá um pedido subsidiário pedindo a condenação do ente público caso o tribunal conclua pela improcedência do primeiro pedido, ou seja, pela inexistência de responsabilidade do particular.

Imaginemos que a acção é proposta num tribunal comum. O autor coloca, em primeiro plano, o pedido de condenação do particular e, em segundo lugar e subsidiariamente, o pedido de condenação do ente público.

Será que podemos estar perante um caso de extensão de competência do tribunal ? Isto é, será que, caso o pedido de condenação do particular não proceda o tribunal comum pode, através da extensão de competência, condenar o ente público?

A competência que a lei reconhece ao tribunal da causa estende-se aos incidentes, à matéria da defesa suscitada pelo réu e às questões levantadas por via de pedidos reconvencioanis mas não já quando às questões prejudiciais[3].

A extensão da competência de um tribunal, enquanto incidência processual corresponde a um “alargamento da competência do mesmo, atribuída para certa questão, a outras que se encontram em conexão com ela (mas para as quais, tomadas isoladamente, autonomamente, o tribunal não teria competência)”[4], nos termos em que aparece regulada no CPC (v. artigos 96º a 98º do CPC), exclui, em princípio – em princípio, pois existe, como de seguida veremos, uma excepção (referimo-nos às questões prejudiciais, v. art. 97.º do CPC) – situações que afectem a competência material do tribunal.

Este é o regime próprio da extensão de competência para as “questões incidentais”, lato sensu: a decisão de uma questão incidental ou determinada por questão suscitada pelo réu como meio de defesa, que colida com a competência material do tribunal é sempre privada do efeito correspondente ao caso julgado material (v. art. 96.º, n.º 2 do CPC).

Este é, também, o regime relativo às “questões prejudiciais”, sendo que quanto a estas a possível decisão é sempre privada do efeito do caso julgado material, art. 97.º, n.º2, in fine.

Nos termos do n.º1, do art. 98.º do C.P.C, a questão da impossibilidade de extensão da competência que implique ofensa às regras da distribuição desta em função da matéria também se aplica no caso de estarmos perante questões reconvencionais uma vez que  o tribunal é competente para as questões deduzidas por via da reconvenção desde que tenha competência para elas em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.  Se não tiver, o reconvindo será absolvido da instância.

Fora estes caos, não há qualquer previsão legal que permita o alargamento da competência do tribunal a questões para as quais, tomadas isoladamente, esse tribunal não disporia de competência[5].

Não se esqueça que,  mesmo nos casos de questões incidentais, prejudiciais e reconvencionais ( art. 96.º  - 98.º C.P.C), a competência em razão da matéria sempre é ressalvada a possibilidade de extensão da competência.

A pretensão de formação de caso julgado material (isto é,  do caso julgado cujo efeito se projecta para além do processo em que é gerado) é sempre pressuposta pela formulação de um pedido subsidiário.

O cerne da questão reside na articulação funcional da teleologia das regras gerais e específicas relativas à determinação da competência - previstas nos art. 61º-  95º do CPC - e das regras respeitantes à extensão e modificação da competência previstas nos art. 96º - 100º do C.P.C.

Segundo José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, “ as disposições dos artigos anteriores [ art. 61º - 95º] estabelecem a competência jurisdicional legal, como tal alheia, na sua origem, à vontade das partes, determinando o tribunal que deve conhecer a acção com base em certos factores atributivos, de entre os quais avulta o objecto do processo tal como é apresentado pelo autor no momento da respectiva propositura.  No entanto, não só é frequente o autor e o réu suscitarem, posteriormente, questões que, consideradas autonomamente, podem extravasar a competência do tribunal, mas cujo conhecimento, por elas estarem mais ou menos directamente relacionadas com o objecto da causa, é relevante para a acção ou para a defesa, como também, quando isso não comprometa o interesse público na administração da justiça, há que atender ao interesse das partes na determinação do foro competente para o julgamento da acção.  Respondendo a estas preocupações, os artigos 96º a 98º tratam da extensão da competência legal do tribunal, por forma a permitir que este se pronuncie sobre questões incidentais (artigo 96º), prejudiciais (artigo 97º) e reconvencionais (artigo 98º), e os dois artigos seguintes da modificação dessa competência por vontade das partes, nos âmbitos internacionais (artigo 99º) e interno (artigo 100º)[6]”.

Se o autor formula um pedido subsidiário pretendendo a condenação de alguém( neste caso a condenação de um ente público) e, com ela, pretendendo obter caso julgado material, leva a que, nos termos do art. 96.º, n.º2, in fine do C.P.C o tribunal judicial seja incompetente para apreciar tal pedido uma vez que é incompetente em razão da matéria.

Com isto pretendemos dizer que, ao ser formulado um pedido subsidiário, haja um controlo da competência do tribunal que irá apreciar esse pedido que ultrapassa o mero desenho da lide configurada pelo autor.

A competência material, uma vez que envolve o interesse público na administração da justiça, faz parte do núcleo intangível da cumulação de pedidos( v. art. 470.º, n.º1 do C.P.C).

Se o autor intentou a acção num tribunal comum e fez um pedido subsidiário pedindo a condenação da Administração, a formulação desse pedido subsidiário implicaria que esse tribunal  - comum  - se colocasse na posição de decisor de uma questão reservada à jurisdição administrativa. Seria uma extensão de competência da jurisdição comum pois estar-se-ia perante um alargamento da competência do tribunal, atribuída para certa questão, a outras que se encontram em conexão com ela (mas para as quais, tomadas isoladamente, autonomamente, o tribunal não teria competência), sendo que tal extensão, nas condições que se colocam (através da formulação de um pedido subsidiário), extravasaria dos pressupostos possibilitadores dessa extensão de competência.

Deste modo, o tribunal comum é incompetente para considerar o pedido subsidiário de condenação do ente público.  A consideração do pedido subsidiário formulado contra o ente público e o chamamento deste em função da aceitação desse pedido, traduzir-se-ia na ofensa, por parte do Tribunal das regras de competência material.

A solução para o problema assim criado, não pode ser outra que a absolvição da instância do ente público.

3.2.  Litisconsórcio (necessário ou voluntário)?

Mas será que tal solução não coloca em causa o efeito útil visado pela sentença?

Vejamos o seguinte exemplo:

O tribunal comum considera o ente público  parte ilegítima na acção. O autor obtiver uma sentença que julga provado que quem teve a culpa do acidente foi  motorista do Ministro das Finanças. Ora,  não sendo o ente público parte na acção, não pode ser condenado no pedido.

Se, de seguida, o autor obtiver uma sentença do tribunal administrativo que julgue provado que quem tinha sido o responsável pelo acidente de viação foi o particular, então este não poderá ser condenado no pedido uma vez que não poderá ser, novamente, parte na acção.

Ou seja, será que distribuir as partes em dois processos diferentes não prejudicará o efeito útil que se visa com a sentença contrariando o próprio art. 28.º, n.º2 do C.P.C?

Contrariamente ao que acontece na figura da coligação( v. art. 31.º-A, do C.P.C), a incompetência em razão da matéria não é um obstáculo à concretização do litisconsórcio( v. art. 27.º e 28.º do C.P.C).
Saliente-se que as regras respeitantes à legitimidade das partes inserem-se  no Livro I; pelo contrário, as regras da competência do tribunal inserem-se no Livro II.

O legislador apenas criou essa excepção à admissibilidade da coligação mas não criou qualquer excepção  relativamente ao litisconsórcio porque, nesse caso, pretende que a causa seja submetida ao mesmo tribunal. Ou seja, o legislador afastou a possibilidade de coligação sempre que colida com as regras da competência material do tribunal. Pelo contrário, não o fez, expressamente,  quanto ao litisconsórcio.

Por isso, não é da competência  do tribunal que podemos determinar a admissibilidade do litisconsórcio.
Todavia, o facto de não saber, a priori, qual dos dois foi o culpado no acidente implica que a resolução desta situação seja determinada pela forma como o autor a peticiona.
Nos termos do art. 28.º, n.º1 do C.P.C não há norma legal que imponha uma situação de litisconsórcio necessário nesta situação.

Se o autor formula um pedido subsidiário, a situação, tal como configurada pelo autor, corresponde a um caso de litisconsórcio alternativo o qual pertence à espécie de litisconsórcio voluntário[7].

Num caso semelhante, o Tribunal de Conflitos[8] entendeu que “não se pode afirmar a inconveniência de poderem ser proferidas decisões de mérito por tribunais com competências materiais distintas, pois os AA. formularam pedidos de indemnização contra entidades públicas e privadas e os critérios legais para as respectivas responsabilizações têm diferenças substanciais ... mas também no conceito de culpa do serviço, apenas aplicável à responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas públicas, que é influenciado por «referências objectivas relacionadas com a função dos seus órgãos» e se reconduz a uma ampliação das possibilidades de imputação de culpa à Administração, o que leva a concluir que, em relação a ela, «não vale inteiramente o critério abstracto e típico de actuação do bom pai de família a que se refere a 1ª parte do nº 2, do artigo 487º do Código Civil»”.

Ou seja, do exposto só pode resultar que o regime do litisconsórcio voluntário  não se sobrepõe às normas de competência material.

Como supra referido, as normas sobre a competência em razão da matéria pertencem ao grupo das normas a que a lei processual atribui um especial valor imperativo, sujeitando a sua inobservância ao regime de incompetência absoluta, em que o interesse público no seu acatamento é muito mais fortemente tutelado do que as normas sob incompetência relativa.

Além do mais, se a incompetência em razão da matéria impede a coligação de autores ou réus (art. 31º do CPC), a formulação de pedidos subsidiários (art. 469º, nº 2), a cumulação de pedidos (art. 470º, nº 1), a apensação de acções propostas separadamente e que pudessem ser reunidas num único processo (art. 275º, nº 1) e a extensão da competência do tribunal às questões deduzidas por via de reconvenção (art. 98º, nº 1) não será de admitir a apreciação de um pedido subsidiário por um tribunal comum contra um ente público, para o qual apenas tem competência um tribunal administrativo.

Com isto, parece-nos que os  inconvenientes de ordem prática da eventual necessidade de propositura de duas acções não poderão sobrepor-se à imperatividade das normas sobre a  competência em razão da matéria.

3.3.  Conclusão

A competência do tribunal é  determina pelo pedido do autor. Por isso, está em apenas em causa o modo como o pedido é formulado pelo autor.

Não só o tribunal comum é incompetente em razão da matéria para apreciar um pedido de condenação de um ente público pelos danos causados na sequencia de um acidente de viação, como o tribunal administrativo é incompetente razão da matéria para apreciar um pedido de condenação de um particular, na sequência de um acidente de viação, deduzido pelo autor.

Tudo dependerá do modo como o pedido é formulado.

Se o autor pretender intentar a acção no âmbito da jurisdição comum, o tribunal só será competente para apreciar o pedido de condenação contra o particular. Caso deduza um pedido de condenação do ente público, a solução não poderá ser outra a não ser a da absolvição do réu da instância.

Se, pelo contrário, pretender intentar a acção no âmbito da jurisdição administrativa, o tribunal administrativo apenas poderá apreciar o litígio no respeitante ao ente público. A existência/não de responsabilidade do particular só pode ser apreciada pela jurisdição comum.


Senhor Ministro, terminámos este conjunto de Sessões.
Tendo em conta a especificidade do seu caso, são € 250/ sessão.  Todavia, se desejar recibo, são mais € 50/sessão.” – diz, desembaraçadamente, o Dr. Sexto Sentido.

Teixeira dos Santos, hesitante, passa um cheque no valor de € X...

É a estratégia do autor que determinará a solução de cada caso...


[1] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, pp. 90-91.
[2]  Jorge Pais do Amaral, Direito Processual Civil, Almedina, 2009, p. 180.
[3] Remédio Marques, A acção declarativa à luz do código revisto, Coimbra Editora, 2009, p. 327.
[4] João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1º vol., revisto e actualizado,  “Obras Completas Professor Doutor João de Castro Mendes”, Lisboa, 1986, p. 546.
[5] Idem.
[6] Código de Processo Civil anotado, vol. 1º, 2ª ed., Coimbra, 2008, p. 179. Cfr. Remédio Marques, op. cit. pp. 199-200.
[7] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex.,pp. 155 e 167.
[8] Ac. Tribunal de Conflitos de 2004.06.29, Processo n.º 1/01. 

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