sexta-feira, 25 de março de 2011

"Teixeira dos Santos no consultório do Dr. Sexto Sentido. A 2a sessão"

- Relaxe Senhor Ministro.... vamos começar mais uma sessão.

Sessão n.º 2: Âmbito da jurisdição administrativa em matéria de responsabilidade civil extracontratual

2.1. Jurisdição administrativa

Após a Revisão Constitucional de 1997  - na qual se explicitou um verdadeiro direito à tutela jurisdicional efectiva dos particulares perante a Administração Pública( v. art. 268.º, n.º4 e 5 C.R.P.) -  o legislador ordinário alterou, radicalmente, o panorama da justiça administrativa.

Relativamente ao âmbito da jurisdição administrativa, a reforma do contencioso administrativo[1], implicou, essencialmente, duas alterações.

Por um lado, os tribunais administrativos passaram a ser competentes para dirimir todas as questões da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas.

Por outro, os tribunais administrativos passaram também a ser competentes para dirimir litígios emergentes de contratos celebrados pelo Estado ou outras entidades públicas que a lei especificamente submeta/admita a submissão a um procedimento pré-contratual de direito público, cujo regime seja regulado por normas de direito público ou que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.

No âmbito da  responsabilidade civil e dos contratos, a proposta de lei do Governo à Assembleia da República baseava-se num critério objectivo da natureza da entidade demanda. Assim, sempre que um litígio envolvesse uma entidade pública – por lhe ser imputado o facto gerador do dano ou por ser uma das partes do contrato – a competência para a apreciação do referido litígio era da jurisdição administrativa[2].

Os tribunais administrativos e fiscais passariam a ser os tribunais materialmente competentes para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil e de contratos que envolvessem a Administração sendo irrelevante, para o caso, o facto de os actos serem de gestão pública ou de gestão privada ou o facto de os contratos estarem submetidos a um regime de direito privado ou a uma regime de direito público.

Da leitura das alíneas g), h), i), do art. 4.º do ETAF resulta um regime de unidade jurisdicional - tanto no que respeita ao contencioso da responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública (em virtude do abandono da falta distinção entre gestão pública e gestão privada, como critério de determinação da competência do tribunal ) -  como também, mais amplamente, no que se refere ao contencioso de toda a responsabilidade civil pública que agora passa a ser da competência dos tribunais administrativos[3].

Como refere Vasco Pereira da Silva[4], as actuações administrativas tendem a surgir unificadas em razão da ideia ( material) de função administrativa, e não da regra formal do exercício do poder. É a dimensão  - material e teleológica – da satisfação de necessidades colectivas através de formas públicas e privadas que justifica um tratamento legislativo e jurisdicional unitário.

Foi essa a solução, em matéria de responsabilidade civil extracontratual, que o art. 4.º ETAF consagrou[5].

O nosso ordenamento jurídico delimita a competência dos tribunais administrativos e fiscais em razão da natureza das relações jurídicas em causa( v. art. 212.º, n.º3, C.R.P. e art. 1.º, n.º1, do ETAF), completando depois essa cláusula geral e aberta( art. 1.º, n.º1 do ETAF) com uma enumeração exemplificativa que concretiza os tipos de situações jurídicas susceptíveis de ser enquadradas no Contencioso Administrativo.

No  art. 4.º, n.º1 enumera-se, a título exemplificativo, um critério mais amplo, constante da cláusula geral de qualificação, que delimita o âmbito da jurisdição administrativa em razão da natureza da relação jurídica[6]

A existência de uma  cláusula geral de longo alcance combinada com uma enumeração exemplificativa muito extensa levou a que se consagrasse, em termos amplos, a competência dos tribunais administrativos e fiscais  para todas as ligações jurídicas correspondentes aos exercício da função administrativa[7].

 Uma vez que a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa é feita através da adopção do critério da relação jurídica, possibilita-se a  ponte entre o direito substantivo e o processual, abrindo o contencioso às novas realidades jurídicas decorrentes da modernas Administração Prestadores e Infra-estrutural[8].

2.2. Responsabilidade civil extracontratual

Como ponto de partida, podemos dizer que os tribunais administrativos são competentes para dirimir todas as questões de responsabilidade civil extracontratual que envolvam pessoas colectivas de direito público.

Podem estar em causa danos que resultam do exercício da função administrativa mas também danos resultantes do exercício das funções legislativas e judiciais.

O ETAF abrange ainda os casos de responsabilidade civil extracontratual causados por titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos – incluindo acções de regresso contra si intentadas pelas entidades públicas às quais prestam serviços[9] ( v. art. 4.º, n.º1, al. g), h) do ETAF).

Como supra referimos, deixou de ser relevante para efeitos de determinação da jurisdição competente para apreciar o litigio, o facto de os actos serem praticados no âmbito de um exercício de gestão pública ou gestão privada.

A jurisdição administrativa é competente para apreciar as questões de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da questão de saber se essa responsabilidade resulta de uma actuação de gestão pública ou de uma actuação de gestão privada. A distinção deixa de ser relevante para efeito de determinar a jurisdição competentes: em ambos casos é a jurisdição administrativa.

O ETAF não faz qualquer opção de natureza substantiva dirigida a afastar a existência, no plano substantivo, de regimes diferenciados de responsabilidade da Administração. Limita-se apenas a abandonar esse tipo de distinções renunciando utilizá-lo como critério de delimitação no âmbito das jurisdições.

A jurisdição administrativa é competente para apreciar as questões de responsabilidade emergentes do exercício da função legislativa tendo em conta que ainda envolve  a aplicação de um regime de direito público, respeitante a questões relacionadas com o exercício de poderes públicos.[10] É ainda competente para apreciar as questões de responsabilidade resultantes do – mau – funcionamento da administração da justiça.

Exclui-se, todavia, a apreciação das questões por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição bem como as acções de regresso contra magistrados que daí decorrem: art. 4.º, n.º3, al. a) ETAF[11].

Como refere Mário Aroso de Almeida, o facto de a al. g), do n.º1 do art. 4.º do ETAF não fazer qualquer referencia à função administrativa tem o propósito de incluir toda a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, resulte ela do exercício de qualquer das funções estaduais.  Deste modo, o autor entende que também se compreendem no âmbito do preceito as acções em que  se faça valer a responsabilidade do Estado peço exercício da função política[12].

Estando em causa danos emergente da actuação da Administração Pública não é relevante, se essa actuação era/não desenvolvida no exercício da função administrativa, prosseguindo fins públicos[13]A jurisdição administrativa é  competente para apreciar todas as questões de responsabilidade civil extracontratual emergentes das condutas dos seus órgãos, funcionários ou agentes das pessoas colectivas de direito público que integram a Administração Pública, independentemente de saber se essa responsabilidade emerge de uma actuação de gestão pública o uma actuação de gestão privada.

Note-se que a al. i ), do n.º1 do art. 4.º prevê a competência da jurisdição administrativa para apreciar as questões de responsabilidade civil extracontratual de entidades privadas e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, nos casos em que o art. 1.º, n.º 5 do RRCEE as submete a este regime, isto é, sempre que a responsabilidade resulte de acções ou omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de Direito Administrativo. Nestes casos, as actuações que exprimem o exercício de prerrogativas de poder público ou que se rege por normas de direito público ficam abrangidas pela jurisdição administrativa.

2.3. Litígios excluídos do âmbito da jurisdição administrativa

Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal. Por isso – salvo derrogação pontual legalmente prevista -  apreciação de litígios de matéria civil e criminal, que envolvam aplicação de normas de direito privado e de direito criminal, ficam excluídos do âmbito da jurisdição administrativa.

Ficam também excluídos do âmbito da jurisdição administrativa os poderes que a C.R.P. e a LTC conferem ao Tribunal de Contas em matéria de controlo jurisdicional da observância da legalidade financeira da actividade administrativa.

Existem ainda disposições pontuais que impõe aos tribunais judiciais o julgamento de certas matérias jurídico – administrativas[14].

Nos n.º2 e 3 do art. 4.º estão situações que se encontram excluídos do âmbito da jurisdição administrativa.
Todavia, as exclusões previstas nos dois numerus são distintas.

Como salienta Mário Aroso de Almeida[15], o n.º2 faz uma delimitação negativa da jurisdição administrativa pois limita-se a explicitar o critério do art. 1.º, n.º1 identificando tipos de litígios que se encontram excluídos do âmbito da jurisdição administrativa porque não têm natureza administrativa.

O n.º3  já introduz verdadeiras restrições ao critério do art. 1.º, n.º1 excluindo do âmbito da jurisdição administrativa tipos de litígios que seria de entender que nele estariam incluídos.

-Senhor Ministro, está a fazer muitos progressos! Em princípio, na próxima sessão o seu problema ficará resolvido.

Até amanhã! 

Continua...

Joana Andrade Nunes


[1] A expressão corresponde à entrada em vigor da Lei n.º 12/2001, de 19 de Fevereiro( Novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) e da Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro( Novo Código de Processo nos Tribunais Administrativos).
[2] Gonçalves Lopes, Contribuição para uma apreciação critica do contencioso administrativo português, Verbo Jurídico.
[3] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2009, pp. 488 ss.
[4] Vasco Pereira da Silva, op. cit.,p. 521.
[5] Sai fora do âmbito deste trabalho a responsabilidade civil contratual. Todavia, salienta-se que, no tocante aos litígios dos contratos, o ETAF continua a apostar numa bipartição de competências entre a jurisdição administrativa e a jurisdição comum. Para tal, o ETAF formula critérios de qualificação dos contratos. Estando em causa um procedimento pré-contratual, a jurisdição administrativa é competente para apreciar as matérias relativas à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais exista lei que os submeta a um procedimento pré-contratual de direito administrativos( art. 4.º, n.º1, al. e) do ETAF). Segundo o critério substantivo, a jurisdição administrativa é competente para apreciar todas as questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objectivo passível de acto administrativo, de contratos especificamente acerca dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público( art. 4.º, n.º1, al. f) do ETAF). Nos termos da al. b), do n.º1, art. 4.º do ETAF, os tribunais administrativos e fiscais são ainda competentes para apreciar a invalidade de quaisquer contratos – independente de serem administrativos ou de direito privado – que directamente resultem da invalidade do acto administrativo no qual se funda a respectiva celebração.
[6] Vasco Pereira da Silva, op. cit., p. 491.
[7] Vasco Pereira da Silva, op. cit., p.489.
[8] idem.
[9] Diogo Freitas do Amaral/ Mário Aroso de Almeida, Grandes Linhas da reforma do contencioso administrativo, Almedina, 2007, p. 36.
[10] Da exposição do ETAF.
[11] V. Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 21 de Março de 2006, no qual se defende que só estão excluídas as acções em que a causa de pedir seja um facto ilícito imputado a um juiz dos tribunais judiciais no exercício da sua função de julgar e não qualquer outro facto que não configure erro judiciário.
[12] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2010, p.169, nota 101.
Cfr., Vieira de Andrade, Justiça Administrativa, Almedina, p.117 onde se defende que os casos de responsabilidade pelo exercício da função politica saem fora do âmbito da jurisdição administrativa uma vez que caberia aos tribunais judiciais, em exclusivo, apurar a responsabilidade do Estado.
[13] Mário Aroso de Almeida, op. cit., p. 169.
[14] Por exemplo, o regime do ilícito de mera ordenação social que, não obstante estar em causa a impugnação de uma decisão administrativa de aplicação de coimas, sai fora do âmbito da jurisdição administrativa. O mesmo acontece relativamente ao regime da fixação de indemnizações devidas por expropriações ou, por ex., a impugnação de decisões da Autoridade da Concorrência.
[15] Mário Aroso de Almeida, op. cit., p. 182.

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