quinta-feira, 24 de março de 2011

E o prémio é... um corte na sua remuneração!!!!!

Ontem, ao ler estas declarações, decidi que, esta manhã, ira partilhar convosco umas palavras sobre os famosíssimos cortes salariais.

Googlei “ cortes salariais” e, em 0, 09 segundo, apareceram cerca de 4.310.000 resultados sobre esta temática!!!

Das opiniões de “café” às opiniões de muy ilustres advogados, muitas linhas têm corrido sobre o que muitos já apelidaram de medida  esmaga famílias .

Toda esta discussão tem, na sua base, o artigo 19.º da Lei do Orçamento do Estado para 2011( Lei n.º 55-A/ 2010, de 31 de Dezembro):

Artigo 19.º
Redução remuneratória

1 — A 1 de Janeiro de 2011 são reduzidas as remunerações totais ilíquidas mensais das pessoas a que se refere o n.º 9, de valor superior a € 1500, quer estejam em exercício de funções naquela data, quer iniciem tal exercício, a qualquer título, depois dela, nos seguintes termos:
a) 3,5 % sobre o valor total das remunerações superiores a € 1500 e inferiores a € 2000;
b) 3,5 % sobre o valor de € 2000 acrescido de 16 % sobre o valor da remuneração total que exceda os € 2000, perfazendo uma taxa global que varia entre 3,5 % e 10 %, no caso das remunerações iguais ou superiores a € 2000 até € 4165;
c) 10 % sobre o valor total das remunerações superiores a € 4165.”


Como forma de reação, o contra-ataque contra os cortes salariais inundou  os tribunais com providências cautelares.

Lançando mão de providências cautelares antecipatórias, os sindicatos pretendiam  suspender os cortes salariais alegando que a norma legal lhes está subjacente( Lei do Orçamento de Estado) é inconstitucional. Os impugnantes alegaram que, tendo por base uma lei inconstitucional, esta não lhe poderá servir de fundamentação ao ato administrativo que determina os cortes salariais.
Deste modo, o tribunal deveria intimar o Ministério a não processar os vencimentos com as respectivas reduções.

Os tribunais Administrativos e Fiscais fiscalizam a legalidade dos actos que exprimem o exercício da função administrativa.  Estão mais direcionados para aferir se os atos administrativos violam as leis do que para aferir a constitucionalidade dessas mesmas leis.

Deste modo, sai fora do âmbito da jurisdição administrativa( v. art. 4.º, n.º1, al. a) ETAF) a fiscalização de atos que exprimam o exercício da função política e legislativa com os padrões pelos quais esses atos se devem reger.

Não é possível, por isso,  proceder à impugnação direta de atos legislativos nos tribunais administrativos – salvo se estes, não obstante serem emanados sob a forma de ato legislativos, contiverem decisões materialmente administrativas não consubstanciando uma manifestação do exercício da função legislativa( cf. art. 52.º/1 e art. 268.º, n.º4 CRP)[1].

Daí que estas providências cautelares não fossem dirigidas, diretamente, à Lei do Orçamento de Estado mas sim ao ato administrativo que determina os cortes salariais dos funcionários públicos.

De acordo com o art. 120.º do CPTA , para uma providência cautelar poder proceder têm de estar preenchidos dois critérios. Por um lado, o juiz terá de verificar se a pretensão que o autor tem no processo principal tem a aparência de bom direito ( fumus bonis iuris), isto é, se, sendo uma tese defensável, o requerente poderá ter êxito na causa principal; por outro lado, terá de verificar se está em causa um prejuízo de difícil reparação, ou seja,  se com a mora da sentença poderá resultar um risco de retardamento ou de infrutuosidade da tutela requerida( periculum in mora). Estando em causa “ações em massa” este requisito  será  difícil de verificar...

Deste modo, para ser atribuída, o juiz terá de fazer uma avaliação da existência do risco de uma situação de facto irreversível ou da produção de um prejuízo de difícil reparação para o requerente e do grau da viabilidade da pretensão deduzida/ a deduzir no processo principal.

Não obstante o preenchimento cumulativo destes dois requisitos, nos termos do n.º2, do art. 120.º do CPTA, a providência cautelar pode ainda ser recusada  quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adopção de outras providências.

Era sabido que o Estado, assim que notificado do processo cautelar, avançasse com uma resolução fundamentada alegando que estava em causa o interesse público. Em regra, sempre que o Estado invoca esta norma, os tribunais optam por decidir a favor deste último( veja-se, a título de exemplo, o  Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 399/ 2010).

Além do mais, os tribunais têm entendido que, estando em causa questões financeiras, não existe um prejuízo irreparável.

Se o juiz na primeira instância concluir de forma favorável aos trabalhadores – decidindo que as normas do Orçamento de Estado são inconstitucionais – o Ministério Público, enquanto representante do Estado, terá de recorrer, obrigatoriamente, para o Tribunal Constitucional( v. art. 280.º, n.º2, al. a) e n.º 3 C.R.P.).

Caso a decisão final seja no mesmo sentido, será aplicável a todos os trabalhadores e, neste cenário, o Estado terá de devolver aos trabalhadores, com os respectivos juros, os valores que deixou de pagar.

É esta a lógica dos nossos tribunais....  

O Bloco de Esquerda e o Partido Comunista Português, lançando mão do mecanismo mais expedito que poderá, na prática, possibilitar algum resultado prático para os trabalhadores da função pública, requereram ao Tribunal Constitucional, ainda durante o mês de Janeiro,  a fiscalização sucessiva abstrata do diploma( v. art. 281.º, n.º2, al. f) da C.R.P.).

O Provedor de Justiça justificou, no dia de ontem, que ausência de um pedido de fiscalização da constitucionalidade – mesmo depois de o mesmo lhe ter sido pedido em mais de 110 queixas – se deve ao facto de  já ter sido  entregue ao Tribunal Constitucional um pedido semelhante por um grupo de deputados.

O Provedor de Justiça considera que a decisão do Tribunal Constitucional será no sentido da constitucionalidade, tendo por pano de fundo o contexto difícil das finanças públicas".

E assim se confirma o que  supra referimos:  perante um contexto difícil das finanças públicas, a Constituição tutela os interesses do Estado em vez de proteger os cidadãos...

Para terminar, deixo apenas uma nota relativamente aos trabalhadores que exercem as suas funções na função pública ao abrigo de um  contrato individual de trabalho -  tendo em conta que também foram abrangidos por esta medida.

O trabalhador que não tem um contrato de trabalho em funções públicas( ou não esteja num cargo de nomeação) está abrangido pelo Código do Trabalho onde se prevê, muito claramente, o princípio da irredutibilidade da retribuição(v art.129.º, n.º1, al. d) CT) .

Desconsiderando, neste texto, a questão da (i)legalidade da medida, saliento apenas que estes trabalhadores, ao contrário daqueles que exercem as suas funções ao abrigo de um contrato de trabalho em funções públicas, nos termos da al. d), do n.º3, do art. 4.º do ETAF, ficam excluídos do âmbito da jurisdição administrativa: as respectivas ações têm de ser intentadas junto dos tribunais comuns.

Nas palavras do Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, criou-se, por isso, uma dualidade  indesejável de jurisdições: criou-se um imbróglio interpretativo.

O contrato individual de trabalho na Administração Pública, uma vez que é antecedido de um procedimento administrativo, está sob a alçada da jurisdição administrativa ( v. art. 5.º, da Lei n.º 23/ 2004, de 22 de Julho).

O mesmo tipo contratual é, ao mesmo tempo e na mesma norma, qualificado como administrativo e desqualificado como administrativo para efeitos contenciosos.

Por isso, numa tentativa de resolução desta questão, parece que, estando em causa litígio relativos ao contrato individual de trabalho da Administração Pública, ficará a jurisdição dos tribunais judiciais incumbida da sua resolução. Para o contencioso administrativo, focará o contencioso pré-contratual do contrato individual de trabalho...

No mínimo, parece ser, sem dúvida, uma situação “ esquizofrénica”...

 Joana Andrade Nunes


[1] Também não é possível impugnar, junto de um tribunal Administrativo, actos que exprimam o exercício da função politica. Para mais desenvolvimentos sobre a questão, v. Afonso Rodrigues Queiró, Actos de Governo e contencioso de anulação.  Coimbra, 1970.

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