quinta-feira, 24 de março de 2011

“Teixeira dos Santos no consultório do Dr. Sexto Sentido”

Após o trágico acidente de viação, Teixeira dos Santos decide consultar o Dr. Sexto Sentido, seu psicólogo de longa data.
Completamente familiarizado com o consultório, Teixeira dos Santos, assim que entra, é rapidamente convidado a deitar-se no divã bordeaux.
- Diga-me, por favor, o que o traz hoje por cá, Senhor Ministro?
- Ai Senhor Doutor! Tenho a minha vida de pernas para o ar! Não sei o que fazer...Há uma semana que não consigo “pregar olho” durante toda a noite! E... não é a crise política que me está a tirar o sono! Essas situações há muito que fazem parte da minha vida...  
- Hmm...Parece que as sessões anteriores lhe estão a fazer efeito. Conte-me, por favor, o que se passou consigo para o deixar neste traumático estado.
- Há uma semana, por volta das 14h34, tive um grave acidente na Rua da  Imprensa à Estrela. Tinha acabado de sair da Assembleia da República para uma reunião de urgência. Segundo o meu motorista, mesmo no cruzamento, avançaram três carros em simultâneo: o carro do meu Ministério e outros dois carros particulares. Para um dos carros particulares o sinal estava verde; para o meu carro e para o outro o sinal estava vermelho... De repente... catrapuz! Batermos uns nos outros! Só me lembro da cara de pânico do meu motorista. Senhor Doutor... Estava tão preocupado com a reunião que nem vi bem o que se passou...O motorista  jura a pés juntos que não teve culpa; está lavado em lágrimas com a situação! Não sei o que fazer! Não sei se o Ministério será responsabilizado ou se será o motorista, responsável, em exclusivo. Gostava de o ajudar... Por isso, contactei o meu advogado para ver o que se poderá fazer. Tendo em conta a complexidade do caso, e que só terei a resposta daqui a 20 dias, não consigo dormir pois não sei como isto acabará!
-Relaxe Senhor Ministro.... vamos começar a sessão.


Sessão n.º1: Responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas

1. O novo Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais entidades Públicas

O novo regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, representa o  culminar  de um processo aberto com a aprovação da Constituição de 1976, a qual veio a pôr a descoberto  - e mesmo a inconstitucionalidade superveniente -  do diploma então vigente em matéria de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas: o Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967[1].

1.1.  Antecedentes

A responsabilização do Estado por danos causados aos particulares data do início do século XIX.
Longe vão os tempos em que  the king can do no wrong( rex non potest peccare)!
Durante o período absolutista vigorava a ideia de que o poder público jamais poderia ser responsabilizado pelos prejuízos que causasse aos particulares.
Uma vez que o Rei não podia praticar qualquer malefício, os danos que as vítimas sofressem em consequência das actuações públicas deveriam ser suportados por si[2].
Qualquer indemnização para reparação de eventuais prejuízos que pudesse ser atribuída mais não era do que uma graça do monarca[3].
Com o nascimento da figura do Fisco no período do Estado Polícia, o Estado passou a ser responsabilizado no âmbito das relações de carácter patrimonial que tivesse com privados.
A Administração, enquanto actividade puramente executiva da legislação[4], expressão da vontade geral, representava a ideia de que é próprio da soberania impor-se a todos sem compensações[5].
Só quando o Estado deixa de ser um ente abstencionista na vida económica e social e passa a ser um Estado Social – admitindo-se, deste modo, a possibilidade de gerar danos para os particulares com a sua actuação – é que se consagra um regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado.
Na Alemanha, o artigo 131 da Constituição de Weimar consagrou a responsabilidade civil administrativa; na Espanha, a mesma foi consagrada com a Constituição republicana de 1931, nos E.U.A. com o Federal Torts Act, de 1946, em Inglaterra com o Crown Proceedings Act, de 1947 e, em França, por interpretação jurisprudencial.
Em Portugal, o art. 2399.º do Código Civil de 1867 consagrava o princípio da irresponsabilidade do Estado pelos prejuízos causados no exercício da sua actividade de execução da lei.  Por sua vez, o art. 2400.º responsabilizava os funcionários administrativos, a título exclusivamente pessoal.
Nos anos 30, aditou-se ao art. 2399.º a responsabilidade solidária do Estado e alargou-se às autarquias locais através do Código Administrativo.
Foi no Decreto 48051, de 21 de Novembro que se consagrou a responsabilidade delitual  – pelo risco e por facto lícito.
Todavia, este diploma, além de desadequado, com a consagração da responsabilidade civil extracontratual do Estado no art. 22.º da Constituição de 1976, passou a padecer de inconstitucionalidade superveniente.
Consagrava-se, de forma lata, a responsabilidade do Estado no âmbito da actividade administrativa como também no âmbito da actividade politico – legislativa e no âmbito da actividade jurisdicional.
A desadequação do decreto e a necessidade imperiosa[6] de concretização do art. 22.º da C.R.P.  determinaram o “nascimento” do novo regime de responsabilidade civil do Estado.

1.2.   A responsabilidade da Administração

A responsabilidade civil administrativa pode ser definida como o conjunto de circunstâncias da qual emerge, para a administração e para os seus titulares de órgãos, funcionários ou agentes, a obrigação de indemnização dos prejuízos causados a outrem no exercício da actividade administrativa[7].
Utilizou-se  o qualificativo civil para não haver dúvidas de que não está em causa responsabilidade política, criminal, contra-ordenacional ou disciplinar[8].
No campo da responsabilidade civil pelo exercício da função administrativa, as principais inovações do diploma foram, essencialmente, as seguintes:
i.               No art. 8.º procedeu-se a uma extensão do campo de condutas praticadas com culpa grave;
ii.              No art. 7.º, n.º3 e n.º4 consagrou-se a responsabilidade da Administração pelo funcionamento anormal dos seus serviços( faute du service);
iii.            Nos art. 9.º, n.º1 e 10.º, n.º2 introduziu-se um regime de presunção de culpa leve nos casos em que os danos são causados por actos jurídicos ilícitos. V. o n.º3 do art. 10.º quanto á presunção de culpa leve no caso de incumprimento de deveres de vigilância.
O diploma consagra a regra de que a responsabilidade civil por danos decorrentes da função administrativa é responsabilidade exclusiva do Estado ou da pessoa colectiva de direito público quando a acção/omissão ilícita seja cometida com culpa leve pelo seu funcionário/agente/ titular.
Uma vez que está em causa uma acção/ omissão cometida com culpa leve, nos termos do art. 7.º, não haverá direito de regresso ( art.6.º).
Só quando o facto for praticado com dolo ou culpa grave é que haverá responsabilidade solidária – art. 8.º, n.º1 e 2 - não obstante o Estado e as demais pessoas de direito público gozarem de direito de regresso contra os titulares/ funcionários/ agentes responsáveis( n.º3, do art. 8.º) sem prejuízo do procedimento disciplinar.
Os art. 9.º e 10.º  dão corpo aos requisitos ilicitude e culpa.
São consideradas ilícitas as acções ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objectivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos.
Prevê-se ainda no n.º 2, do art. 10.º, a existência de ilicitude nas situações de funcionamento anormal do serviço.
Todavia, para que haja responsabilidade civil delitual não basta a verificação de qualquer ilegalidade. Como salientam Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, a ilicitude deve consistir  na violação da norma que tutela a posição jurídica subjectiva cuja lesão se pretende ver reparada – como decorrer do art. 9.º, n.º1[9].
A culpa  consiste na preterição da diligência pela qual a lei exigia que o autor do facto voluntário e ilícito tivesse pautado a sua conduta[10]  aferindo-se face à diligência e aptidão que seja razoável exigir, em função das circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão, funcionário ou agente zeloso e cumpridor.  O art. 10.º, n.º1 parte, deste modo, de uma concepção de culpa em abstracto sem perder, todavia, as circunstâncias do caso concreto tomando como referência o titular médio do órgão ou o funcionário médio e não o bonus pater famílias.
No n.º2, do art. 10.º estabelece-se uma presunção elidível de culpa leve. Deste modo, demonstrando-se a existência de dolo ou de culpa grave, é possível uma acção judicial pelo Estado/ Pessoa Colectiva contra o titular de órgão/ funcionário ou agente permitindo, nos termos do n.º4, do art. 8.º, o exercício do direito de regresso.
Caso exista uma pluralidade de responsáveis, continua a ser aplicável o disposto no art. 497.º do Código Civil[11].
No art. 11.º prevê-se também a responsabilidade pelo risco salvo nos casos em que se prove a existência de responsabilidade subjectiva assente na culpa do titular de órgão, funcionário ou agente.

1.3. Responsabilidade por facto ilícito

Estando em causa um acidente de viação que envolve uma viatura do Ministério das Finanças está em causa uma situação de responsabilidade por facto ilícito.
Neste âmbito, o n.º1 do art. 7.º estabelece um princípio de responsabilidade exclusiva do Estado e demais pessoas colectivas de direito público pelos danos que resultem de acções ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, no exercício da função administrativa e por causa desse exercício.
Têm de estar em causa actos funcionais, ou seja, actos praticados no exercício das suas funções e por causa desse exercício. Estando em causa actos que respeitem à vida privada do sujeito em questão – ainda que, ocasionalmente tenham sido praticados no local de trabalho ou durante o horário de serviço – saem fora do escopo desta norma.
Uma vez que o funcionário do Ministério das Finanças conduzia a viatura  do Ministério transportando o Ministro para uma reunião urgente, parece não haver dúvidas de que cai dentro do escopo da referida norma.
Ainda que estivesse fora do horário de expediente, a Administração poderia ser responsabilizada uma vez que basta a existência de uma conexão aparente com as funções públicas em causa para que esta possa ser responsabilizada.
E se, por exemplo, o acidente tivesse ocorrido durante o fim-de-semana quando o funcionário do Ministério regressava a casa vindo do ginásio?
Será que, estando fora do seu expediente, a Administração será responsável pelo acidente de viação?
Ainda que estivesse fora do horário de expediente, a Administração poderia ser responsabilizada uma vez que basta a existência de uma conexão aparente com as funções públicas em causa para que esta possa ser responsabilizada.
Parece ser suficiente, para responsabilização da Administração, a existência de uma aparência do exercício de funções.
O funcionário, ao conduzir o carro do Ministério, gera a aparência  - para qualquer  terceiro observador  - de que se encontra no exercício da suas funções.
Caso assim não se entendesse, o ónus da prova recairia sobre o particular que pretende responsabilizar o funcionário em questão. Note-se que provar que este não se encontrava no horário de expediente poderá ser probatio diabólica!
Além do mais, o art. 8.º ao consagrar um regime de responsabilidade solidária,  prevê que, havendo culpa grave ou dolo do titular do órgão, funcionário ou agente, o Estado goze de direito de regresso contra o funcionário em questão.
Deste modo, não há qualquer desresponsabilização daquele que cometeu, na prática,  o ilícito.
Se, ao estabelecer um regime de responsabilidade solidária se pretendeu reforçar a garantia dos particulares perante as entidades públicas – uma vez que a solidariedade se traduz em melhores e mais oportunidades de ressarcimento dos danos sofridos – então não faz sentido  desproteger o particular vedando-lhe a possibilidade de responsabilizar a Administração.

Senhor Ministro, terminámos a nossa primeira sessão.
Amanhã, na 2a sessão, analisaremos “O âmbito da jurisdição administrativa”.
Desejo-lhe resto de bom dia!
Continua...

Joana Andrade Nunes

[1] Maria Rangel de Mesquita,  O regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas e o Direito da União Europeia. Almedina, 2009, p.9.
[2] João Caupers, Notas sobre a Responsabilidade do Estado e outros Entes Públicos, Capítulo VIII, p.3.
[3] Para uma evolução mais detalhada, v. Diogo Freitas do Amaral, A responsabilidade da Administração no direito português, in Estudos de direito público e materiais afins, I, Coimbra, 2004, pp. 511 e ss.
[4] Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado de Matos, Responsabilidade Civil Administrativa, Direito Administrativo Geral, Tomo III, Dom Quixote, 2008, p. 12.
[5] E. Laferrière, apud Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado de Matos, op. cit., p. 12.
[6] Maria Rangel Mesquita, op. cit., p. 10.
[7] Marcelo Rebelo de Sousa/ André Salgado de Matos, op. cit., p. 11
[8] idem.
[9] Marcelo Rebelo de Sousa/ André Salgado de Matos,  op. cit., p. 21.
[10] Marcelo Rebelo de Sousa/ André Salgado de Matos,  op. cit., p. 25.
[11] Maria Rangel Mesquita, op. cit., p. 21.

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