domingo, 24 de abril de 2011

Os poderes de condenação do tribunal no domínio da acção administrativa especial de condenação à prática de acto administrativo devido

Os poderes de condenação do tribunal no domínio da acção administrativa especial de condenação à prática de acto administrativo devido
1. Enquadramento geral
Uma das inovações trazidas pela Reforma de 2002 do Contencioso Administrativo foi a acção administrativa especial de condenação à prática de acto administrativo devido, inspirada directamente na VwGO alemã de 1960 e regulada nos arts. 66.º ss CPTA.
Esta introdução veio superar a exclusividade do modelo cassatório de anulação dos actos de indeferimento – anteriormente, o único meio de que dispunha o particular que carecesse de um acto administrativo (devido), caso em que impugnava o acto administrativo de indeferimento, expresso ou tácito –, passando a reconhecer-se que o objecto do processo nas acções de condenação é a própria pretensão do particular e não o eventual acto de indeferimento, conforme dispõe o art. 66.º/2 CPTA. O juízo deixa de debruçar-se sobre o acto para passar a incidir sobre a relação administrativa[1],[2].
O art. 71.º CPTA, sob a epígrafe «Poderes de pronúncia do tribunal» pode ser qualificado como a «pedra de toque» da acção especial de condenação à prática de acto devido[3].
O preceito manifesta o sentido inequívoco da revisão de 2002 e da introdução desta nova forma de processo, em concordância com o disposto no art. 66.º/2 CPTA: o tribunal deve pronunciar-se sobre a pretensão material do particular, mesmo quando sobre ela a Administração se não haja pronunciado ou quando haja recusado a apreciação do requerimento apresentado pelo particular. Fica, por isso, afastada a lógica revisora dos processos cassatórios.
Rejeitam-se, assim, as meras sentenças de anulação ou declaração de nulidade dos actos administrativos: se a pretensão do particular for considerada procedente, o processo deve terminar com uma sentença de condenação à prática de um acto administrativo, não sendo suficiente que o tribunal anule ou declare nulo o acto de indeferimento[4].
A apreciação deste poder que a lei confere ao tribunal não é isenta de dificuldades, desde logo, porque se trata de uma sentença que vem condenar a Administração à prática de um acto que será, naturalmente, um acto administrativo. Pode este cenário oferecer-se bastante problemático, pois, em caso algum, pode o tribunal substituir-se à Administração naquela que é a sua margem de livre apreciação, naquela que é a área em que rege o seu poder discricionário – está aqui em causa o princípio da separação de poderes, consagrado nos arts. 2.º CPR e 3.º CPTA.
2. Os poderes de cognição do tribunal no caso particular dos conceitos indeterminados
Questão paradigmática nesta sede é a concernente aos conceitos indeterminados que, pela sua natureza, deverão ser preenchidos pelo seu aplicador – numa primeira instância, pela própria Administração. Em que circunstância poderá o tribunal pôr em causa esse preenchimento e essa interpretação, decidindo diversamente?
Pela importância que esta apreciação jurisprudencial pode ter, em separado se analisam os poderes do juiz nesta matéria.
É hoje reconhecido que os conceitos indeterminados são sindicáveis – a Administração não é, pois, «senhora» da interpretação daqueles conceitos, podendo a interpretação que faça ser questionada junto dos tribunais.
O STA[5] já identificou algumas situações típicas em que a interpretação dos conceitos indeterminados feita pela Administração pode ser questionada:
a)      A maioria dos conceitos descritivos cujo critério de avaliação não exige conhecimentos técnicos especiais (ex. «grande quantidade»)
b)      As classes de conceitos de valor, cujo critério de concretização resulta, directamente, da exegese dos textos legais (ex. «local apropriado»)
c)      Todos os conceitos de valor cuja concretização envolva juízos mais especificamente jurídicos, para cujo preenchimento deve ser reconhecido terem os tribunais conhecimentos bastantes (ex. «jurista de reconhecida idoneidade»)
Quando o conceito visa confiar à Administração a tarefa da formulação de valorações próprias do exercício da sua função, só poderá sindicar-se a posição da Administração em casos de erro manifesto de apreciação e de aplicação de critério manifestamente inadequado.
Assim, o Acórdão do STA (Pleno) de 27/01/2008 (Proc. N.º 269/02), que considerou o conceito de «interesse público» um conceito indeterminado, gozando a Administração de liberdade de escolha dos elementos atendíveis para o preenchimento do conceito, o que bem se compreende, pois existe aqui uma certa decisão política que não pode ser confiada aos tribunais, sob pena de violação do princípio da separação de poderes.
3. As sentenças de condenação à prática de acto administrativo devido
Dadas as particularidades acima descritas, relacionadas com o especial cuidado que tem de ser dado ao princípio da separação de poderes, analisar-se-ão agora, os vários tipos de sentenças condenatórias passiveis de serem emitidas na acção administrativa especial de condenação à prática de acto devido.
«Os processos de condenação à prática de actos administrativos são processos de geometria variável»[6], pelo que as pronúncias judiciais têm alcance diverso conforme a configuração dos processos em que são emitidas.
Parece possível distinguir quatro tipos de situações diferentes e, consequentemente, quatro modalidades de sentenças: i) as sentenças que constituem a Administração num dever estrito de prática de um acto administrativo de conteúdo vinculado; ii) as sentenças em caso de redução da discricionariedade a zero; iii) as sentenças indicativas, em que o tribunal identifica e especifica os aspectos vinculados e iv) as sentenças que condenam à prática de acto discricionário em absoluto[7].
3.1.Os casos de vinculação legal do conteúdo do acto a praticar
Pode ocorrer que a lei confira directamente ao Autor o direito a um acto administrativo com um determinado conteúdo, caso que se soluciona com o art. 71.º/1. Nesta situação, a apreciação da ilegalidade do acto (eventualmente) praticado corresponde precisamente à condenação da Administração à prática do acto pretendido pelo particular.
3.2. Os casos de redução da discricionariedade a zero
Pode haver casos em que não exista uma estrita vinculação legal do acto, tendo a Administração poderes discricionários de actuação, ou de conformação do conteúdo do acto.
Porém, em concreto, dadas as circunstâncias do caso, só lhe resta praticar um acto com um determinado conteúdo. Identifica-se, assim, «apenas uma solução como legalmente possível». Nestes casos, como resulta do art. 71.º/2 CPTA, o tribunal pode (e deve) condenar a Administração à emissão do acto, que é, como se disse, o único possível, não obstante o facto de Administração ter, como se disse, poderes discricionários.
3.3. As «sentenças indicativas» dos aspectos vinculados
Mas poderá ainda ocorrer que o acto administrativo não se encontre vinculado de qualquer forma quanto ao seu conteúdo, cabendo à Administração a decisão de mérito quanto à pretensão do particular, em respeito pelo já aludido princípio da separação de poderes.
Aquilo que o tribunal poderá fazer, nesta circunstância, é precisamente a identificação e especificação dos aspectos vinculados que a Administração deve ter em conta.
É o que acontece, por exemplo, nos casos de indeferimento ilegal, em que o tribunal deve condenar a Administração à substituição do acto ilegal por outro que o não seja[8],[9].
Lembra Vasco Pereira da Silva[10] que este tipo de sentenças ou condenações se inspiram nas «sentenças indicativas» do Direito Alemão, que tanto podem ocorrer em caso de omissão de pronúncia como de acto administrativo desfavorável.
3.4. A condenação à prática de um qualquer acto administrativo (discricionário)
Uma última situação susceptível de ser configurada é aquela em que a única vinculação do acto administrativo pretendido respeita à oportunidade da sua emissão, ou seja, em que o acto deve ser emitido, mas não existe qualquer vinculação que o tribunal possa impor à Administração no tocante à sua prática.
Mário Aroso de Almeida[11] indica dois tipos de casos em que pode ocorrer esta condenação. Em primeiro lugar, os casos de inércia ou omissão da Administração, em que esta disponha de amplos poderes discricionários e não tenha fornecido quaisquer elementos para que a questão pudesse ser levada a juízo em termos mais concretos do que aqueles em que surge configurada nas normas.
Em segundo lugar, os casos em que a Administração disponha de amplos poderes discricionários e tenha infundadamente invocado questões prévias para se recusar a apreciar a pretensão que perante ela tenha sido formulada. Nestes casos, o tribunal apenas pode verificar que tais questões prévias não existiam e, por isso, condenar a Administração a apreciar o mérito da pretensão do particular.
Aqui, o juiz condena à prática de qualquer acto devido e não à prática de um determinado acto devido, pois não pode apreciar a forma como a Administração apreciou a causa, uma vez que esta não o fez, efectivamente.
4. Conclusões
O legislador parece ter sido sábio. Respeitando as particularidades da questão relacionada com o necessário respeito pelo princípio da separação de poderes, consagrou uma solução equilibrada – os tribunais não podem substituir-se à Administração nem impor-lhe uma conduta que a lei ou o caso concreto não permitam descortinar como impositiva.
Apenas neste último caso poderá o juiz emitir um comando, mais ou menos concretizado, de actuação.
Atendendo aos receios que precederam à consagração desta acção administrativa especial de condenação à prática de acto devido, relacionadas com o «beliscar» da discricionariedade administrativa, parece que a solução legal conseguiu ponderar anseios e receios de mudança, prevendo uma solução eficiente, aumentando as garantias dos particulares, sempre no respeito pela Constituição.


[1] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2.ª ed., Almedina, 2009, p. 388.
[2] Esta solução era uma das hipóteses possíveis de concretização da alteração constitucional de 1997, que veio impor, no art. 268.º/4 CRP, a possibilidade da determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos como corolário da tutela jurisdicional efectiva garantida aos particulares. Este preceito poderia ser cumprido através da garantia de uma tutela declarativa, de uma tutela condenatória ou de uma tutela substitutiva. O legislador optou pela segunda.
[3] Mário Aroso de Almeida, Comentário ao CPTA, 3.ª ed., Almedina, 2010, p. 467.
[4] Assim se compreende o disposto no art. 51.º/4 CPTA. Os actos de indeferimentos não podem ser judicialmente contestados apenas através de uma acção de impugnação de um acto administrativo emitido ou fictício, devendo, se o fizer, ser o Autor convidado «a substituir a petição, para o efeito de formular o adequado pedido de condenação à prática do acto devido».
[5] Acórdãos do STA de 14/06/2007 (Proc. N.º 140/07) e de 17/01/2007 (Proc. N.º 1068/06)
[6] Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª ed., Almedina, 2005, p. 226.
[7] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso…, op. cit., p. 392, nota 114, distingue apenas dois tipos, numa lógica de contraposição da vinculação à discricionariedade, entendendo que apenas no primeiro caso há vinculação, sendo que nos restantes três é o poder discricionário da Administração a pedra de toque.
Parece resultar das palavras de Mário Aroso de Almeida, Comentário…, op. cit., pp. 474 ss, que este Autor distingue três modalidades – a condenação à prática de acto estritamente vinculado, no qual insere a condenação em caso de redução da discricionariedade a zero, a condenação indicativa e a condenação à prática de qualquer acto, em que há poder discricionário em absoluto.
Optei por fazer uma sistematização diversa, já que parece, em adesão argumento usado por Vasco Pereira da Silva, que a sentença em caso de redução da discricionariedade a zero se distingue da sentença de condenação à prática de acto vinculado, pois naquela é o caso concreto – e não a lei, de per si – que vincula a Administração, que, numa circunstância diversa daquela, teria, pois, liberdade de conformação da sua actuação. Porém, nem todos os casos em que existe discricionariedade administrativa me parecem iguais, dado que essa mesma discricionariedade se apresenta com graus diversos. Optei, por isso, por autonomizar quatro tipos de casos.
[8] Assim, a título exemplificativo e em termos gerais, um indeferimento que conclui um procedimento administrativo em que não ocorreu audiência dos interessados.
[9] Mário Aroso de Almeida, Comentário…, op. cit., p. 477, destaca a existência, neste tipo de sentenças, de um efeito preclusivo semelhante ao que ocorria nas anteriores sentenças de anulação de actos de indeferimento.
[10] O Contencioso…, op. cit., p. 393
[11] Comentário… , op. cit., p. 478.

sábado, 23 de abril de 2011

O acto administrativo inimpugnável

A inovadora regulação do artigo 38º do CPTA permite que um acto administrativo que se tornou inimpugnável, ou seja, um acto administrativo contra o qual já não seja possível instaurar um processo que o impugne, visando a sua anulação, nomeadamente por ter caducado o prazo dentro do qual podia ter sido impugnado (58º e 59º CPTA), possa vir a ser reconhecido como ilegal, a titulo incidental, quando a lei o admita, no âmbito de uma providência judiciária que não seja especificamente dirigida à anulação ou declaração de nulidade desse acto, e designadamente no domínio da responsabilidade civil da Administração por facto ilícito.

Trata-se de um reforço do princípio da autonomia ressarcitória pois consagra a separação do dever de indemnizar relativamente ao ónus de impugnação do acto causador da responsabilidade. A norma vem pôr cobro à polémica que se instalou pela aparente contrariedade entre dois segmentos normativos do artigo 7º do D.L. nº 48 051 de 21/11 de 1967, afastando a interpretação de tratar a impugnação contenciosa do acto administrativo danoso como pressuposto da acção de responsabilidade dando razão àqueles que já defendiam que a única interpretação conforme à Constituição do presente artigo, seria a que estabelecia não a caducidade do direito de ressarcimento mas um regime de exclusão ou diminuição da indemnização quando a negligência processual do lesado, por falta ou deficiente impugnação contenciosa do acto administrativo ilegal tenha contribuído para a produção ou agravamento dos danos. Tal como sustenta Margarida Cortez (1): não se trata de um limite à autonomia das acções sobre responsabilidade “mas a simples previsão de uma situação particular de concurso de culpa do lesado que a verificar-se, influencia a fixação do quantum imbenizatório”. A norma do artigo 7º caracterizaria uma situação de concorrência de culpa do lesado semelhante à prevista no artigo 570º do Código Civil. Esta solução é agora consagrada expressamente no artigo 4º da lei 67/2007 de 31 de Dezembro, onde se prevê que «quando o comportamento culposo do lesado tenha concorrido para a produção ou agravamento dos danos causados, designadamente por não ter utilizado a via processual adequada à eliminação do acto jurídico lesivo, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade de culpas de ambas as partes e nas consequências que delas tenham resultado, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.» Tal como defende Vieira de Andrade (2) «o direito à indemnização não depende da tempestiva impugnação administrativa, mas a autonomia da acção de responsabilidade não obsta a que o particular possa ver diminuída ou eliminada a indemnização a que teria direito, por concorrências de culpa, na medida em que a produção ou agravamento de danos seja imputável a negligência processual do particular»

O artigo 38º corrobora este entendimento, ao admitir que o acto administrativo que se tornou inimpugnável e se cristalizou na ordem jurídica como válido pode, na produção dos seus efeitos, provocar danos na esfera jurídica do destinatário. Tais danos devem ser ressarcidos no âmbito de uma acção de responsabilidade civil. O acto não vai convalidar-se na lei substantiva podendo ser conhecido a título incidental pois não é o decurso do tempo que sana um acto ilegal sendo apenas um pressuposto processual administrativo. O nº 2 do artigo esclarece, porém, que uma tal pretensão a deduzir através da acção administrativa comum, há-de culminar com uma pronúncia indemnizatória, esta não é meio para a acção proposta ser utilizada para obter o efeito que resultaria da anulação do acto. 

Tal como sustenta Mário Aroso de Almeida (3), «o artigo 38º coloca-se num plano estritamente processual, para o efeito de sublinhar que, do ponto de vista processual nada impede que num processo não-impugnatório, submetido à forma da acção administrativa comum, o tribunal verifique, reconheça e declare, a título incidental, a ilegalidade de actos administrativos que já não possam ser impugnados nem, portanto contenciosamente anulados. Ponto é que, do ponto de vista substantivo, algum efeito útil se possa extrair de uma tal verificação - o que depende, como resulta do artigo 38º, nº1, de uma opção da lei substantiva, que tem de reconhecer relevância, para qualquer efeito, ao reconhecimento judicial a título incidental, da ilegalidade de actos administrativos já consolidados».

(1)Margarida Cortez, Responsabilidade Civil da Administração por Actos Administrativos Ilegais e Concurso de Omissão Culposa do Lesado, pag. 249
(2)Vieira de Andrade, A justiça Administrativa (lições) pag.203 e 204
(3) Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, pag 97 e 98




Caducidade do direito à acção e extinção da lide cautelar


Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte , de 18-03-2011
Sumário:
I. Os processos cautelares visam ser instrumentais da acção principal, sendo esta a sua característica
endógena mais proeminente;
II. No meio da tipicidade processual, em que os cautelares são meros serventuários dos fins a atingir  na acção principal, a convolação permitida pelo artigo 121º do CPTA surge como uma solução  atípica, imposta pela necessidade de tutela jurisdicional efectiva;
III. Coerentemente com o princípio da tipicidade dos meios processuais, e natureza instrumental  dos processos cautelares, temos de concluir que essa antecipação do juízo de fundo apenas poderá  ser realizada durante o período de vida do direito de intentar a acção principal;
IV. Depois de ter caducado o direito de intentar a acção, deixa de fazer sentido, e de ser legalmente  possível, proceder à referida antecipação.

Caducidade do direito à acção e extinção da lide cautelar

No artigo anterior deixámos uma questão por resolver: será que num processo cautelar, tempestivamente intentado, poderá ser antecipado o juízo de fundo sobre causa principal que já não pode dar entrada em juízo, por caducidade do respectivo direito de acção?

É a esta questão que propomos dar agora resposta.

O CPTA assegurou dois modelos de tramitação: um modelo de tramitação ordinária – aplicável aos processos declaratórios e executórios comuns – e um modelo de tramitação urgente – aplicado aos processos especiais previstos nos títulos IV e V do CPTA.
Na secção II, do Capítulo V, da parte geral do Título I, o CPTA determina o âmbito do modelo de tramitação urgente.

De acordo com o princípio da tipicidade legal das formas de processo – art. 35.º e 36.º do CPTA  - devem seguir a forma urgente nos processos relativos ao contencioso eleitoral, ao contencioso pré-contratual, os processos relativos à intimação para prestação de informações, consulta de documentos ou passagens de certidões e os processos relativos à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias tendo também tramitação urgente o processo cautelar. Deste modo, os interessados podem delas lançar mão  para o efeito de aí verterem e verem tramitadas as suas pretensões[1].

Respeitando o princípio da tipicidade das formas de processo, as pretensões urgentes devem ser formuladas nos processos que seguem um modelo de tramitação urgente, sendo certo que cada tipo de pretensão - urgente tipificada nos Títulos IV e V do CPTA deve obrigatoriamente constituir o objecto do respectivo processo e este deve tramitar segundo a forma urgente[2].

Como referido no artigo anterior, a concretização do direito ao processo efectivo e temporalmente justo implica que estejam previstos processos simplificados e estruturalmente adequados para as situações de urgência.

Os processos cautelares[3]destinam-se a obter providências visando evitar que o tardio julgamento da acção principal possa determinar a inutilidade da decisão que nela vier a ser proferida, e que, por causa disso, o interessado seja colocado numa situação de facto consumado ou numa situação em que o volume ou a qualidade dos prejuízos sofridos inviabilize a possibilidade de reverter a situação que teria se a ilegalidade não tivesse sido cometida[4].  Nas palavras de Vieira de Andrade[5] visam especificamente garantir o tempo necessário para fazer justiça.

Os processos cautelares são, deste modos, caracterizados pela técnica da acessoriedade – instrumentalidade e pela técnica da provisoriedade que culminam na emissão de decisões judiciais de urgências provisórias[6].

Estando em causa  proferimento de decisões conservatórias é comum falar-se numa dupla instrumentalidade  perante o direito material ou perante a pretensão jurídica substantiva uma vez que  tramitando de forma dependente e tendo como função primordial assegurar a efectividade de um processo ordinário, eles visam assegurar sobretudo a utilidade da sentença principal[7]  sendo que, muitas vezes, o direito material não chega a ser analisado nem provisoriamente aplicado. A dupla instrumentalidade está presente na cláusula aberta do art. 112.º, n.º1 do CPTA, ex vi art. 2,º, n.º1 do CPTA traduzindo a função servil das providencias nele decretadas para assegurar a efectividade do processos principal.

Em suma, são duplamente instrumentais  perante o direito material uma vez que são instrumentais perante um outro processo e  instrumentais, num segundo plano, perante o direito material visando assegurar a plena utilidade da sentença que vier a ser emitida nesse processo e não realizar imediatamente a tutela judicial do direito material[8].

Pelo contrário, estando em causa o procedimento de uma decisão antecipatória provisória a sua função é semelhante aos processos urgentes autónomos. Nestas decisões está em causa a realização provisória da tutela judicial de uma pretensão jurídica substantiva garantindo a protecção provisória do direito material que está em vias de ser afectado.

A diferença entre estes e os processos urgentes autónomos é que, enquanto estes últimos não estão condicionados pela acessoriedade instrumentalidade culminado em decisões de fundo, naqueles a técnica da acessoriedade – instrumentalidade está patente permitindo realizar a tutela judicial efectiva de todas as pretensões de urgência atípicas, por referência a uma situação principal, sendo que a tutela judicial do direito material é apenas realizada provisoriamente[9].

Esta relação de dependência e autonomia do processo cautelar perante o processo principal  manifesta-se no regime da legitimidade das partes, no critério que determina a competência do tribunal, na vigência e duração dos efeitos das providências etc. Temporalmente, a providência apenas pode ser pedida quando se precisar dela, no plano da necessidade, quando existir uma situação de periculum in mora ameaçando a efectividade da decisão no processo principal.

Já vimos, no artigo anterior, que a convolação permitida pelo artigo 121º do CPTA surge como uma solução atípica imposta pela necessidade de tutela jurisdicional efectiva. Com este mecanismo, o juiz cautelar pode tecer um juízo de fundo que deveria ter ligar na acção principal, antecipadamente em nome da urgência na resolução definitiva do conflito. A decisão de fundo proferida ao abrigo da convolação do artigo 121º constitui decisão definitiva, não decisão provisória:  origina caso julgado material, não caso julgado formal.

Como foi referido no douto acórdão traduz-se em decisão que é própria de acção principal, e não de acção cautelar, pois é daquela que são próprios os seus efeitos.

É verdade que, de acordo com o estipulado nos artigos 113.º e 121.º do CPTA, a convolação permitida por  tanto poderá acontecer durante como antes da pendência da acção principal.

Todavia, o juiz cautelar só poderá emitir um juízo de mérito durante o período de tempo em que a acção principal ainda pode ser intentada. Assim o determina o principio da tipicidade dos meios processuais e a própria natureza instrumental dos processos cautelares.

Acompanhamos, por isso, a posição vertida no douto acórdão. Pensar de outro modo, significa admitir um novo tipo de processo principal urgente, que não está previsto na lei(...) desvirtuando a natureza instrumental do processo cautelar, que pura e simplesmente deixaria de o ser, para se tornar um processo principal.

A convolação só poderá ter lugar quando a acção principal for tempestivamente proposta. Depois de caducado o  direito de acção não é legalmente possível – por este direito ter caducado – proceder à convolação.

Não está em causa saber se os requisitos de aplicação do art. 121.º do CPTA estavam ou não preenchidos – como o recorrente pretendeu fazer valer. Tendo em conta este mecanismo é, dada a sua natureza, instrumental e acessório do processo principal, a convolação não pode prosseguir quando, na verdade, o direito de acção principal já caducou. Só caso o mecanismo previsto no art. 121.º do CPTA fosse caracterizado por  total independência de um outro processo é que tal poderia proceder.

Como é defendido no aresto, uma conclusão em sentido contrário torná-la-ia numa forma ínvia de contornar o prazo legalmente imposto para intentar a acção, dirigindo-se apenas a obviar a situação de extemporaneidade em que se caiu, carecendo de razão objectiva, assim, a necessidade de tutela(...)ocorrendo um verdadeiro desvio dos fins que levaram à consagração da própria convolação do artigo 121º do CPTA. Deixar-se-ia entrar pela janela aquilo que se fez sair pela porta...




[1] Ac. do TCA do Norte, de 18/3/2011.
[2] Isabel Celeste Fonseca, Os processos Cautelares na Justiça Administrativa – Uma parte da categoria da tutela jurisdicional de urgência. In Temas e Problemas de Processo Administrativo, p. 123.
[3] Para um desenvolvimento aprofundado da questão v. Freitas do Amaral, Providências Cautelares no Novo Contencioso Administrativo, in Cadernos de Justiça Administrativa, N.º 43, 2004.
[4] Ac. do TCA do Norte, de 18/3/2011.
[5] Vieira de Andrade, Tutela Cautelar, IV Seminário de Justiça Administrativa, in Cadernos de Justiça Administrativa, N.º34,  2002. P. 47.
[6] Neste sentido, v. Isabel Celeste Fonseca, op. cit., p. 133.
[7] Idem.
[8] Idem, p. 136.
[9] Idem.