sexta-feira, 20 de maio de 2011

Parte IV - Aplicações práticas da Boa-fé no ordenamento administrativista nacional


4.1- Campos de aplicação
Não restam dúvidas quanto à existência e aplicação entre nós do princípio da boa-fé. Assim, o que resta agora saber ou sistematizar, é como deve ser efectivamente aplicado. Neste sentido, procedemos à divisão do estudo em quatro campos de aplicação principais: a construção de princípios, a interpretação, a actuação administrativa lato sensu e a conduta individual de cada particular. Com esta divisão cremos abarcar toda a aplicação do princípio da boa-fé entre nós, para que, em seguida, possamos expor os institutos que aceitamos como violadores da boa fé, e por fim, as consequências da sua violação, traçando o quadro jurídico completo da existência e aplicação do princípio da boa fé.
4.1.1-Construção de princípios jurídicos
Neste ponto do nosso estudo, a boa-fé assume uma das suas funções mais importantes dentro do nosso ordenamento: a maternidade da materialidade de princípios jurídicos. Tal como vimos anteriormente, o conceito de boa-fé é altamente indeterminado, pelo que a sua aplicação, sem preenchimento, seria muito reduzida. Precisamente devido a esta consequência – não operatividade – dedicamos tanto do nosso estudo ao seu preenchimento, para que de maneira nenhuma se caia neste erro.
Todavia é este carácter altamente indeterminado que lhe permite ser berço de tantos outros princípios. É precisamente no preenchimento do conceito de boa-fé que chegamos aos princípios derivados, já mencionados (confiança legítima, segurança jurídica, juridicidade, primazia da materialidade subjacente como concretização de um padrão ético de comportamento). Note-se, contudo, que estes princípios derivados não são mais que os principais, uma vez que, com a evolução histórica, também eles foram ganhando autonomia dogmática própria, pelo que se tornaram eles mesmos sedes satélite de outros princípios derivados[1]. A boa-fé tem ainda, a maior importância como fonte inspiradora de outros princípios, não se assumindo exclusivamente como fonte criadora, mas também como factor condicionante na criação de outros princípios que dela são autónomos, independentes e não derivados.
 Assim, reafirmamos a nossa premissa inicial sendo a qual a boa-fé assume um padrão valorativo de importância capital, ao qual inúmeros princípios se vão enriquecer, por isso mesmo, vários são os princípios que a ela podem ser reconduzidos. Podemos assim colocar a exigência de boa-fé em patamares paralelos aos da proporcionalidade e da igualdade, patamares francamente elevados.
4.1.2- Interpretação
A boa fé deve estar presente como pano de fundo de toda a interpretação de realidades de direito administrativo, uma vez que as suas exigências éticas são notáveis e raramente devem ceder face a interesses menores. Entendemos, aqui, interpretação em sentido lato, sendo que integramos também no seu objecto a interpretação de declarações negociais nos contratos administrativos[2], entre os quais se incluem os contratos em que a Administração age como se fosse um particular, a interpretação de actos administrativos, a interpretação de regulamentos administrativos bem como a interpretação da própria organização administrativa.

Quanto às declarações negociais em contratos administrativos, bem como todos os contratos em que a Administração age como se fosse mais um particular, está a Administração vinculada aos deveres de lealdade pré-contratuais[3], sendo a sua violação, uma violação do princípio da boa fé. No que à interpretação dos actos administrativos diz respeito, bem como à interpretação de regulamentos administrativos, a boa fé, mantêm-se como padrão uma vez que toda a actividade da Administração está vinculada constitucionalmente ao respeito pelas regras da boa fé. Mesmo que não houvesse consagração constitucional ou legal este pareceria ser o resultado normal, e de bom senso, a Administração deve ser sempre o mais correcta possível e agir perante o particular de modo a que ele seja o menos lesado possível, mais que não seja, porque há um enorme desequilíbrio entre as duas posições jurídicas. Assim, se há certa norma que pode ser interpretada com dois sentido, e um sentido é claramente mais conforme à ideia de boa fé e por isso tutela de maneira mais forte a posição jurídica do particular, deve este sentido ser escolhido ante o outro.
Por fim, resta analisar a remissão para a boa fé no que à interpretação da organização administrativa diz respeito. Desta forma, sempre que se esteja na dúvida se certo órgão ou agente da Administração Pública tem certas competências, ou se as deve exercer em certo sentido ou não, para além do inevitável e capital teste de proporcionalidade, deve-se ter em conta critérios como a segurança jurídica, a confiança criada na outra parte ou a importante primazia da materialidade subjacente, uma vez que são critérios extremamente importantes na aplicação mais justa possível ao caso concreto.
A importância dada à interpretação é o reconhecimento de uma importância geral da boa fé no quadro jurídico nacional e não uma importância meramente sectorial.

4.1.3- Actuação Administrativa

Toda a actuação da Administração deve ser pautada por critérios de boa fé, isto é, por um padrão ético-normativo exigente, bem mais exigente do que aquele que é exigido aos particulares, não sendo passível de qualquer falha grave. Esta elevada exigência é compreensível, uma vez que a Administração é olhada por muitos como o exemplo a seguir. Assim, o critério personificado do bom pai de família deveria ser em parte preenchido pela Administração. Que o não é já nós sabemos , mas isso não significa que o não devesse ser. Desde as notificações[4] que a Administração faz para certos pagamentos, ao deferimento ou indeferimento de um pedido particular num determinado serviço, até à execução do regulamento de um outro serviço, a Administração está sempre em relação com os seus administrados pelo que é imperativo que se cumpra a vinculação à boa fé.
Neste sentido, surge a boa fé como uma garantia que os particulares têm face à actividade, como vimos, por vezes discricionária, da Administração Pública, de modo a poderem agir contra o Estado-Administração e fazer valer junto dos tribunais os seus direitos.

4.1.4- Conduta individual de cada particular

Ao contrário do que se poderia pensar, a boa fé não se aplica somente enquanto limite à actividade da Administração, sendo que também faz parte do seu âmbito de aplicação as condutas dos particulares quando em relação com esta. neste sentido, a boa fé é exigida também na relação que o particular tem com a Administração, em ambas as suas vertentes mais tradicionais, objectiva, como padrão de conduta moralmente correcto, e, boa fé subjectiva, quanto ao conhecimento que o particular tem de que lesa interesses da Administração.
É a existência de uma tríplice vertente da boa fé (na relação entre Administração-particular, particular-Administração e Administração-Administração) que garante a sua componente equilibrada e não parcial nas aplicações a que a chamamos a intervir.
Concluindo, a cada particular é exigida uma conduta concreta e específica para que a relação com a Administração não seja parasitária mas sim benéfica para ambos os intervenientes. No entanto, esta relação, não obstante ter como paradigma o conceito de sinalagma, diferencia-se dele por uma questão de grau de proximidade na relação a que nos referimos.

4.2- Principais figuras violadoras da boa fé
4.2.1- Remissão geral para o abuso de direito
De entre as mais variadas possibilidades violações da boa fé, destaca-se o abuso de direito, nas suas principais modalidades: o venire contra factum proprium, a suppressio, a surrectio e a toleratio. Aprofundaremos apenas estas quatro figuras principais[5].

4.2.2-Venire contra factum proprium[6]

Nasce em Roma, como a grande maioria destes institutos, sediada numa exceptio doli generalis, sendo um dos primeiros institutos a proteger a bona fides. É, hoje, um dos institutos mais invocados na tutela da confiança em Direito Civil, procurando assegurar as expectativas criadas desde que fundamentadas pela própria credibilidade de quem as fundou. Ora, num plano ideal, claramente não haverá nenhuma entidade mais credível do que a Administração Pública.
Diz-nos MENEZES CORDEIRO que “a ligação entre o venire e a doutrina da confiança tornou-se bastante frequente, na doutrina[7]. Esta ligação à confiança remete-nos para a imensa rede de expectativas, complexíssima, pelo que a sua aplicação é tudo menos linear. Assim, uma vez mais, o facto de ser uma figura de Direito Civil não faz com que não seja aplicada em casos de Direito Administrativo, esta recente vinculação a normas de direito privado faz com que a Administração se agilize e possa responder da melhor maneira às necessidades da sociedade
É BAPTISTA MACHADO, ao falar da dupla função do Direito (reconstitutiva e de institucionalização) quem nos diz “ambas as funções se relacionam com aquela paz jurídica que ao lado da justiça é referida como uma das expressões da própria “ideia de Direito[8], pelo que percebemos que o venire contra factum proprium é ele mesmo garante desta ideia de Direito.
É manifesto que esta proibição de comportamento contraditório é um dos limites mais importantes ao livre arbítrio da vontade, que em último caso causaria o caos. Impera o respeito pelos padrões apresentados, a bom rigor, a favor não só da boa fé mas como da manutenção da ordem[9]

       4.2.3- Suppressio e surrectio

A expressão supressio, é uma expressão traduzida por MENEZES CORDEIRO[10] da expressão alemã “Verwikkung”. O seu âmbito de aplicação preenche-se sempre que há um prolongado não exercício consciente de um direito, a sua consequência é a preclusão do direito. A História tem nos mostrado que o não uso, pelo menos em Direito Constitucional cria uma normatividade não oficial e que na maioria das vezes age contra legem. Assim, não há qualquer dúvida que a supressio neutraliza as posições jurídicas pessoais. Foi essencialmente acolhida em Direito Administrativo no pós II Guerra Mundial.
Da análise cuidada das palavras de PAULO OTERO, “No desenvolvimento dos efeitos da suppressio, verifica-se que o particular poderá beneficiar directamente com o não-exercício de uma competência administrativa, especialmente quando esta envolveria a prática de actos ablativos, adquirindo, uma vez mais por efeito da conjugação entre o decurso do tempo e a tutela da confiança, um direito subjectivo que se constitui ex novo: a suppressio terá então originado um fenómeno reflexo de surrectio[11], a distinção entre supressio e surrectio, não é clara, apesar de tudo, falamos de surrectio sempre que para o particular resultem benefícios da abstenção da acção por parte da Administração Pública, o exemplo dado por PAULO OTERO[12] é a preclusão do prazo para a anulação de actos anuláveis constitutivos de direitos/interesses legalmente protegidos.

       4.2.4- Toleratio administrativa

Nasce da ideia de tolerância, o titular do direito permite que alguém que não o seu titular o exerça. Admitimos esta figura, acompanhando PAULO OTERO[13], sempre que há abdicação do poder ou o não exercício de uma competência devida.
Tal como nos diz PAULO OTERO é dentro da própria Administração Pública que se cria uma normatividade não oficial que poderá inclusivamente ser contra legem, “a própria toleratio administrativa relativamente a certos comportamentos, prescindindo do exercício de poderes ou privilégios, fazendo cair em desuso as respectivas normas que outorgaram esses poderes ou proíbem tais comportamentos (…)”[14]. Desta forma, exige-se que seja um comportamento consciente, estável e duradouro criando direitos subjectivos na esfera jurídica dos particulares. Implica uma conduta omissiva reiterada dos órgãos administrativos em sentido contrário à lei. A Administração fica vinculada às situações que fundadamente cria, é eco do princípio da igualdade, da imparcialidade e da boa fé.

4.3- Consequências da violação do princípio da boa fé
Importa, ainda, concluir em que tipo de responsabilidade incorre a Administração sempre que viola o princípio da boa fé e em que tipo de responsabilidade incorre o particular por violação da mesma.

4.3.1- Responsabilidade Civil
Sempre que o Administração lesar direitos dos particulares será obrigada a indemnizar por responsabilidade civil. Desde 2007 que é o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas[15] que regula esta matéria. Desde logo pelo 2.º e 3.º artigo se percebe que o espírito do legislador não foi alterar o que já estava positivado no Código Civil, foi, antes pelo contrário o de pormenorizar ainda mais, até que ponto seria a Administração obrigada a indemnizar para não existisse qualquer dúvida. Note-se ainda a abrangência deste novo diploma, consagrando responsabilidade por facto ilícito, responsabilidade pelo risco, por danos decorrentes da função jurisdicional, decorrentes da função legislativa e pelo sacrifício. Contudo a responsabilidade pela confiança, principal caso em análise mas não o único[16], estão claramente cobertas pelas outras categorias de responsabilidade civil, nomeadamente pelo risco e pelo sacrifício.

4.3.2- Responsabilidade Penal
ESTEVES DE OLIVEIRA[17], chama-nos a atenção para que a violação do princípio da boa fé pode accionar, também, tutela penal nos termos do Código Penal. Reconduz-se, pois, esta violação ao crime de denegação de Justiça, prevaricação, corrupção, peculato, abuso de autoridade ou violação de segredo[18].
Assim, é esta uma das tutelas sancionatórias mais graves do comportamento dos particulares por violação do princípio da boa fé. Tem como principais destinatários os particulares, por oposição à responsabilidade disciplinar que tem por principais destinatários os funcionários da administração. Concluindo, a violação da boa fé, dependendo da violação que seja pode conformar um crime nos termos do código penal.

4.3.3- Responsabilidade Disciplinar
É nos termos do estatuto disciplinar dos funcionários e agentes da Administração Central, Regional e Local[19], a aplicação do artigo 2.º e 3.º configura, assim, a aplicação da sanção disciplinar enquanto para membros dos órgãos autárquicos, se aplica nos termos da Lei n.º 27/96, o artigo 8.º, ou seja, um dos casos mais graves que pode originar a perda de mandato.
Assim, temos, mais uma vez, a conclusão, a tutela da boa fé apresenta-se forte, não é de todo uma tutela igual a tantas outras, neste caso com a aplicação de um sanção que se em órgãos autárquicos poderia custar o mandato.

4.3.4- Desvalores do acto/norma
Por fim falamos na consequência máxima para uma norma ou acto, por violação do princípio da boa fé,  a sua invalidade. Só se aplicará nos casos mais graves, casos estes em que por aplicação do teste da proporcionalidade se verifica ser mais gravoso a norma ou o acto continuar a produzir efeitos que a sua desaplicação. Até por imperativos da própria segurança jurídica se tem que ter grande prudência na aplicação deste desvalor.
Se em relação ao desvalor da invalidade temos que ter grande prudência, em relação à inconstitucionalidade temos que ter ainda mais. Admitimos estes casos em processos de inconstitucionalidade nas raras hipóteses em que são normas e não comportamentos que violam a boa fé, admitimo-lo, por exemplo em casos em que a norma N estabeleça que a Administração Pública não se encontra sujeita, em caso nenhum, aos deveres de lealdade pré-contratual. A norma N é manifestamente violadora do princípio da boa-fé, e como a boa fé está consagrada na CRP estamos directamente a violar o conteúdo material da CRP.

A verdadeira epopeia pela boa fé no contencioso administrativista continuará ainda para um post final...



[1] Tome-se por exemplo os princípios de audiência dos interessados, princípio da colaboração da Administração com os particulares, princípio da eficiência, ou ainda o princípio de acesso aos documentos.
[2] QUADROS, Fausto de, O concurso público na formação do contrato administrativo, alguns aspectos, in ROA, ano 47, vol III, Dez. pp..725, 1987
[3] Quase por analogia do artigo 227.º CC
[4] Vide, Isabel Marques da Silva, Dever de correcta notificação dos meios de defesa ao dispor dos contribuintes, boa-fé e protecção da confiança, in Direito e Justiça - Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, Vol. 14, Tomo 2, Lisboa, 2000
[5] Para um estudo mais alargado sobre as modalidades de abuso de direito veja-se António Menezes Cordeiro, “Tratado de Direito Civil Português”, I, parte geral, tomo IV, 2007 pp. 239 ss. Aqui desenvolveremos sucintamente o tema somente para que o estudo seja globalmente completo.
[6] Vide, Baptista Machado, “Tutela da confiança e “venire contra factum propriumin RLJ nº3725
[7] Vide, António Menezes Cordeiro, “Tratado de Direito Civil Português”, I, parte geral, tomo IV, 2007 pp. 285
[8] Ibidem pp. 230
[9] Importante função reflexa, esta que a boa fé vem assumindo ao longo do nosso estudo, um função ordenadora social ou pacificadora.
[10] Vide, António Menezes Cordeiro, “Tratado de Direito Civil Português” , I, parte geral, tomo IV, 2007 pp. 312 ss
[11] Vide, Paulo Otero, “Legalidade da Administração Pública” pp. 924
[12] idem
[13] Vide Paulo Otero, “Legalidade da Administração Pública” pp. 783
[14] Op. cit. pp. 784
[15] Aprovado pela Lei n.º 67/2007 de 31 de Dezembro
[16] Qualquer caso de lesão de direitos dos particulares, desde que preenchidos os requisitos da responsabilidade civil do 483º do CC mas nos termos da Lei n.º 67/2007 de 31 de Dezembro, origina a obrigação de indemnizar.
[17] Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves, e, João Pacheco de Amorim, “Código do Procedimento Administrativo” pp. 115
[18] Artigos 369.º; 372.º; 373.ª; 375.º; 378.ª e 383.º do Código Penal.
[19] Aprovado pelo DL n.º 24/84 de 16.I.

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