quarta-feira, 11 de maio de 2011

Parte III - A boa fé e a legalidade

Boa fé e Legalidade

3.1- Introdução e justificação da autonomia do tema

Inicialmente foi apontado como argumento para que a boa-fé não fosse aceite em Direito Administrativo a própria existência do princípio da legalidade, hoje rejeitamos à partida esta visão. Infelizmente, é um tema pouco desenvolvido pela doutrina nacional, ao passo que por exemplo a doutrina alemã, tal como afirma FAUSTO QUADROS[1], deu um passo lógico extremamente evoluído, fazendo decorrer da boa-fé a ideia de legalidade, entenda-se juridicidade, também entre nós sustentaremos esta posição de iure condicto, no entanto, contra a generalidade da doutrina e jurisprudência que tem decidido em sentido contrário.

3.2- Entendimento do princípio da legalidade

Desta forma, importa antes de mais compreender o princípio da legalidade, SÉRVULO CORREIA entende o princípio da legalidade subdividido em três funções,

i)                    Garantística: enquanto segurança jurídica garantindo o cumprimento de uma ideia de Direito que já existe e que ao mesmo tempo se vai recriando.
ii)                   Orientação político-estadual: afirmando-se como Estado de Direito, cumpridor das auto e hetero vinculações jurídicas.
iii)                 Factor de justiça/racionalidade: também a legalidade se orienta para a prossecução da Justiça na maior medida possível.

Podemos também subdividi-lo paralelamente em,

  1. Compatibilidade com a precedência de lei[2] (a lei não devendo ser contrariada)
  2.  Reserva de lei (conformidade da actuação administrativa com a previsão legal vigente).
Assim, urge distinguir legalidade em sentido amplo e legalidade em sentido estrito. Entendemos por legalidade em sentido amplo, o sentido de juridicidade enquanto bloco normativo fundamental, o respeito pela ideia de Direito em traços gerais; enquanto por legalidade em sentido estrito entendemos o respeito pela lei, pelo que a norma escrita nos ordena.

O princípio da legalidade em nada exclui o princípio da boa-fé, nem mesmo por causa da relevância do interesse público. Acontece é exactamente o contrário, fazendo a boa-fé parte constitutiva do fundamento da legalidade. Realmente para as mentes menos positivistas isto bastaria, para sempre que os juízos de boa-fé e de legalidade fossem contraditórios, estarmos perante um conflito de princípios dificílimo de ponderar no caso concreto.

3.3- Consagração legal da boa-fé e seu alcance

No entanto, importa não esquecer que a boa-fé está consagrada na lei. O que nos suscita questão subsequente, ou seja, estando a boa-fé consagrada na lei e na CRP, apesar de não valer por isso, ou seja, por ser um princípio geral de Direito não carece de positivação para ter eficácia e validade dentro do ordenamento, o que sucederá quando a lei em sentido estrito dispuser em sentido contrário ao da boa-fé?

Ora se a boa fé está expressamente prevista na lei, vejam-se artigos 6.º-A CPA e 266.º nº2 da CRP, toda a lei/acto administrativo posterior que for contra esta disposição está a ir contra estes dois preceitos, ou seja, é uma lei inválida. O conflito resolve-se dentro do mesmo plano, no plano legal pela mera interpretação. É este o salto lógico já dado pela doutrina alemã e ainda não dado no nosso ordenamento. A boa-fé por estar consagrada na CRP e no CPA adquire esta morfologia normativa que faz com que esteja sempre por cima da legalidade porque toda a legalidade tem que se submeter às regras de boa fé, ou seja, é ela própria critério de aplicação da própria legalidade. A norma em causa é muito clara, “os órgãos e agentes da Administração pública estão submetidos à CRP e à lei e devem actuar; no exercício das suas funções, com respeito (…) pelo princípio da boa-”, em tudo o que a Administração fizer está sujeita ao Princípio da boa-fé, logo sempre que tiver certo comportamento que viola a boa-fé esse comportamento viola esta norma, da mesma forma que sempre que a Administração violar a proporcionalidade estará a violar esta norma; logo esse comportamento será inválido.

Dificilmente haverá no nosso ordenamento um conflito entre a legalidade e a boa-fé uma vez que é esta mesmo fundamento da legalidade e está ela mesma incorporada no respeito pela legalidade, com isto queremos dizer que a Administração não será, salvo raras excepções obrigada a escolher num caso concreto aplicar o princípio da legalidade ou aplicar o princípio da boa fé, uma vez que aplicando um, dificilmente não estará implicitamente a aplicar o outro.[3]

Isto não é um problema teórico mas sim prático, ou seja, o que interessa saber é se o intérprete- aplicador deve aplicar uma solução maximalista ou minimalista num caso de um destes conflitos de normas.

3.4- Limites e problemas

Não sopesando toda a linha argumentativa há que não atingir o extremo oposto, que seria a boa-fé paralisar a conformidade com a legalidade, sufocando a sua aplicabilidade. A boa-fé entre outras funções tem a de atenuar o rigor da legalidade cega, não a de subverter a legalidade. No entanto, este momento que determina onde já é a boa-fé a extravasar o seu campo de aplicação, ou onde é ainda a legalidade a fazer imperar o domínio de uma lei stricto sensu não existe a priori, é uma escolha casuística, ponderando os prós e os contras da decisão. Contudo, não deixamos margem para dúvida quanto à necessidade de entendermos a boa-fé sob este prisma, é a maneira mais correcta e mais conforme com o caso concreto de a tutelar verdadeiramente, tutelando a própria ideia de Direito, afinal de contas é este o pensamento sistemático. É fulcral entender o Direito em relação, não uma relação de dependência ou parasitária mas uma relação profícua entre elementos que mutuamente se fundamentam.

Um dos principais problemas que decorre da tutela da boa-fé tal como ela se encontra no nosso ordenamento actualmente é que não há uma verdadeira remissão para preceitos legais conclusivos sobre a matéria. Pelas previsões do CPA e da CRP ao serem referidos de todas as formas e em todas as fases não deixa praticamente nenhum campo jurídico da administração fora do alcance da boa-fé. Daí que afamada doutrina defenda que foi ousada esta tutela.

Muito sinceramente temos dificuldade em aceitar que o legislador tenha tido noção do grau de exigência que impôs à Administração, uma vez que a defesa da boa-fé assume-se prevalecente sobre a própria legalidade em sentido estrito, uma vez que é a própria boa fé que em conjunto com outros princípios cria a legalidade em sentido amplo – a juridicidade.

3.5- Situação actual e análise crítica

Infelizmente a maioria da doutrina falha ainda redondamente noutro caso, o poder vinculado da administração[4], é neste ponto que a doutrina se debate com os maiores problemas uma vez que até os tribunais que se têm revelado a favor da boa-fé nos casos de discricionariedade, não aceitam a aplicação da boa-fé neste caso porque a administração não tem qualquer escolha possível a não ser a violação da boa fé.

Defendem, ainda que implicitamente, que a boa-fé tem um papel subsidiário pelo que só se aplica quando há um espaço livre de decisão deixado pela norma. Ora, este raciocínio está viciado pela base, a boa-fé não é algo que esteja fora da lei e seja chamada a colmatar lacunas a título subsidiário, a própria legalidade só encontra verdadeiro sentido útil de braço dado com a boa-fé, ou seja, a ideia de legalidade cairá por terra sem segurança jurídica. É manifesto que a boa-fé tem aplicação no campo dos poderes vinculados, tal como tem aplicação em toda a ordem jurídica, uma vez que a legalidade o tem também, mais é seu fundamento. Assim, exemplos dados em que se pretende a revogação de um acto administrativo por o acto contrário ter criado uma situação susceptível de confiança jurídica legítima e esta ter sido violada, só deverá acontecer, se for mais gravosa a consequência, que a revogação do acto. O objectivo da segurança jurídica nestes casos não é fazer prevalecer um qualquer princípio de mais elevada dignidade, o objectivo é minimizar o prejuízo causado, obedecendo aqui também a um teste de proporcionalidade.

E mesmo ocorrendo esta revogação deve ser limitada ao máximo para que a expectativa jurídica da legalidade em que se confiou seja o minimamente danificada. O que se trata aqui acima de tudo, é de admitir uma vinculação inválida por causa dos efeitos que teve nas esferas jurídicas dos particulares. Seguindo GONZÁLEZ PÉREZ “se um acto pressupõe o exercício de um poder ou direito em confronto com o princípio da boa-fé, então existe fundamento para recorrer deste acto[6]. GONZÁLEZ PÉREZ dá o exemplo da restauração dos prédios, a Administração vincula-se perante os particulares para restaurar os seus prédios, e vincula-se primeiro com o particular A e só depois com o particular B. Todavia o prédio de B está à beira da ruína enquanto o prédio de A está meramente a precisar de uma restauração ligeira. Neste caso concreto, a boa-fé impõe que se restaura primeiro o prédio de B e não o de A, como diria a legalidade estrita.

3.6- Conclusões

Concluímos que a aplicação da boa-fé não depende de previsão expressa da lei, apesar de como no nosso ordenamento está expresso na CRP, é uma previsão para toda a ordem jurídica, simultaneamente, o próprio legislador está sujeito à boa-fé, ainda que indirectamente.

Em casos raros, em que se ponha em causa a exclusão da boa-fé, e esta seja de tal modo desconforme com os mais elementares princípios gerais de direito e do Estado de Direito, talvez a lei deva ser considerada inconstitucional. Contudo, se as normas tenderem a permanecer vigentes deve-se procurar uma interpretação de acordo com a boa fé.

Não há dúvidas que a violação da boa fé tem consequências ao nível das responsabilidade civil devendo o lesado ser ressarcido dos seus danos. Quanto a questão de saber se a violação de tal princípio tem efeitos 
além disso, ou seja conseguindo travar certas actuações que lhe sejam contrárias.


Continuamos ainda a tentar perceber mais e melhor sobre este fundamento muito concreto e basilar do contencioso administrativo...


António Queiroz Martins


[1] QUADROS, Fausto de, O concurso público na formação do contrato administrativo, alguns aspectos, in ROA, ano 47, vol III, Dez. pp..725, 1987
[2] Não falamos de lei enquanto fonte de Direito mas sim o que HAURIOU chamou bloco de legalidade; a este bloco corresponde a consequente ideia de juridicidade, entendendo a vinculatividade à lei em sentido amplo e não em sentido estrito.
[3] Não cremos, apesar de tudo, estar a cair no erro metódico para que alertámos anteriormente, para que se não reconduzam os princípios aos outros indefinidamente. Só o fizemos neste caso para solucionar o debatido problema do conflito entre a legalidade e a boa fé, para concluirmos que não existe.
[4] Falamos de poder vinculado sempre que a lei habilitante da acção administrativa o faça de certa forma que não deixa margem para dúvidas, como SÉRVULO CORREIA o define é uma “tarefa levado a termo sem grande originalidade ou criatividade uma tarefa de execução de um comando que ordem de forma precisa do legislador” não deixa qualquer margem conformadora ao administrador.

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