terça-feira, 10 de maio de 2011

Parte II - A Boa fé como pilar do sistema

Boa fé integrada no ordenamento jurídico nacional

Surgem, assim, inúmeras relações que o Princípio da boa fé estabelece com outros Princípios do nosso ordenamento, importa atender essencialmente ao Princípio da Justiça, ao Princípio do Estado de Direito Democrático, Princípio da Segurança Jurídica, bem como o poder discricionário da Administração Pública e o Princípio da Legalidade[1].

2.1- Boa fé e Justiça

É essencial começarmos o estudo das relações da boa fé enquanto princípio pelo princípio da Justiça e não deixa de ser curioso que em 1988, na 1ª edição do manual de FREITAS DO AMARAL[2], já ele defenda que como corolário do princípio da Justiça a boa fé está implicitamente contida na justiça stricto sensu[3], volvidos vinte anos FREITAS DO AMARAL continua a defender que a boa fé, agora autonomizada quer no CPA como na CRP é uma concretização do princípio da Justiça[4]. Realmente esta recondução ao princípio da Justiça faz todo o sentido, no entanto, importa fazer uma advertência para que se não cai num erro metódico grave.

No estudo geral da Teoria dos princípios, poucos serão os princípios completamente autónomos, leia-se, que adquirem todo o seu conteúdo comunicativo por si só, como se fossem auto-suficientes. E analisando ao pormenor esta realidade, ainda bem que assim é, ora então vejamos, os princípios são reflectores de uma ordem jurídica que só existe por ser um ordenamento uno[5], e é dentro desta unidade que se estabelecem uma multiplicidade de relações principológicas que fundamentam uma mútua materialidade. O que tentamos defender é que em último grau todos os princípios são reconduzíveis ao princípio da Justiça, ou ao princípio do Estado de Direito nos tempos actuais, ou ao princípio da legalidade para os positivistas-legalistas[6]. E, apesar de toda a evolução histórica, o único princípio absoluto é o princípio da Justiça, certamente, também, devido à sua porosidade e vaguidade. Por isto mesmo, importa separar o que há que separar e manter unido o que assim deve permanecer, summ cuique tribuere.

2.2- Boa fé e Estado de Direito Democrático

 Manifesto exemplo do que se acabou de expor, é, do mesmo modo, a relação entre o Princípio da boa fé e o Princípio do Estado de Direito, é o que se passa em Direito Público, mas desta vez em Direito Constitucional, não se falando propriamente no Princípio da boa fé, mas sim da ideia da protecção da confiança, decorrente do Princípio de Estado de Direito Democrático, tal como CANOTILHO[7] nos diz, “mais do que constitutivo de preceitos jurídicos é sobretudo conglobador e integrador de um amplo conjunto de regras e princípios dispersos pelo texto constitucional que densificam a ideia de sujeição do poder a princípios e regas jurídicas, garantindo aos cidadãos liberdade, igualdade e segurança”. Parecendo-nos, também, correcto reconduzir a boa fé[8] a uma certa forma de desenvolvimento da democracia cultural e social, não pensemos que a democracia era meramente política. Está conclusivamente visto que a recondução ilimitada de princípios uns aos outros, para além de não fazer muito sentido, esvazia de sentido algo que o tem na totalidade, entendendo-o, sempre, em relação com os outros elementos do ordenamento, é fulcral entender a relação de qualquer princípio dentro de uma ordem jurídica sempre em relação com os outros princípios[9].

2.3- Boa fé, segurança jurídica e confiança legítima

Também a relação do princípio da boa-fé com o princípio da segurança jurídica pode ser considerada como uma das relações mais conflituosas, no entanto, não o encaramos do mesmo modo. As vozes mais críticas fazem-se ouvir defendendo que a boa fé não será suficientemente digna para invalidar[10] um comportamento ou uma acção de um órgão ou agente administrativo, falamos dos casos em que há um acto administrativo[11] que ordena Z e por imperativos de boa fé se faz Y. Dirão as mentes mais conservadoras, e neste caso retrógradas e néscias, que é inaceitável que tal aconteça, defendemos que o que é inaceitável é que não aconteça. A segurança jurídica é um princípio de Direito sui generis por se encontrar entre o tipo principológico e ser uma característica própria do Direito. Assim, está inerente na ideia de Direito que, o que o Direito consagra, assim se mantém pelo que é seguro criar expectativas jurídicas, exercer direitos em certo sentido, e confiar quer na outra parte, quer seja Administração, quer seja o Legislador, e o que parece escapar às mentes críticas (sem razão) é que esta segurança jurídica é também criada por decorrência da boa-fé.

O que aqui se propõe não é uma revolução copernicana do conceito de segurança jurídica, nada disso, apenas um douto afastamento da realidade, porque por se estar tão colado a ela que se vê distorcida, para que se possa apreender o verdadeiro sentido da Segurança Jurídica e esse verdadeiro sentido é construído em parte pela boa-fé. É a construção de casos tipos, e são eles uma pré-visualização da realidade, que facilita a interpretação fáctica e jurídica do caso concreto, estas balizas jurídicas são elas próprias sedimento da boa-fé objectiva e subjectiva na medida em que o padrão de conduta exigido é sempre o maior, sempre o mais correcto, e acima de tudo o que é possível exigir às circunstâncias do caso concreto. É esta componente, aqui técnico-jurídico, da segurança jurídica, que é dada pela boa-fé, fornecendo os critérios objectivos (objectivamente agiu correcta ou incorrectamente, com conhecimento ou sem conhecimento da lesão de interesses alheios, tinha um legítima expectativa decorrente da natureza das coisas[12], ou era um interesse não tutelado pelo Direito, havia confiança, ou havia aparência de confiança, etc…) para a construção objectiva de modelos a aplicar ao subjectivismo casuístico.

E sem desprimor algum para esta componente técnica, que é da maior importância, o próprio conteúdo material da boa-fé que tem sido dividido pela doutrina entre outros, o princípio da confiança, não serão em parte coincidentes?[13]

Acompanhamos, em parte, FAUSTO DE QUADROS na sobreposição total destes dois princípios, entendendo que a segurança jurídica é de facto um corolário da boa-fé da mesma maneira que a confiança legítima é um corolário da boa-fé. São, contudo, corolários diferentes. Quase que poderíamos reconduzir inteiramente a diferença entre estes corolários à diferença já apontada entre boa-fé no Direito Civil e boa-fé no Direito Administrativo. Assim, são conceitos coincidentes sempre que falamos na tutela de expectativas jurídicas ou na tutela do modo como certo direito é exercido por se conformar com a ordem jurídica existente. No entanto, entendemos que a Segurança Jurídica exige da Administração padrões mais elevados em relação aos exigidos aos particulares e, tal como já referimos, esta diferença de exigência é salutar, é mais uma das formas de entender o Estado-Administrador como pessoa de bem valorando o seu comportamento ético como exemplar para todos os seus administrados.

E ainda estabelecendo uma diferença entre o Princípio da Confiança legítima e Princípio o da Segurança Jurídica, há que precisar a extensão de cada um. Deste modo a segurança jurídica tem um campo de aplicação mais extenso, mais denso e menos determinável, que a confiança legítima, uma vez que se falará em segurança jurídica sempre que se falar quer da função política (legislativa e política stricto sensu), administrativa ou jurisdicional do Estado. Enquanto reservamos a confiança para relações entre privados ou relações de particulares com a Administração Pública mas em que ela se comporte como um privado, no entanto, mesmo nestas relações será exigido mais à Administração Pública do que aquilo que será exigido aos particulares (daí a não rejeição do princípio da confiança no âmbito de Direito Administrativo e a não total sobreposição das razões da diferença entre boa fé em Direito Civil e Direito Administrativo). Não cremos estar a fazer um preciosismo linguístico mas sim um apuramento da técnica jurídica, afinal só com a utilização de precisão máxima podemos falar num verdade ciência jurídica.

2.4- Boa fé e poder discricionário

Por fim, temos ainda a relação da boa-fé com o poder discricionário da administração[14][15], falamos neste caso de uma zona de autonomia pública administrativa tal como SÉRVULO CORREIA caracteriza “na acepção de permissão da criação no âmbito dos actos administrativos e dos contratos administrativos, de efeitos de direito não predeterminadas por normas jurídicas e da titularidade e exercício do correspondente poder, isto é, margem de livre decisão na criação de efeito de direito nas situações concretas regidas pelo Direito”. É característica deste poder discricionário uma actuação marcada essencialmente pela conflitualidade de interesses, este (poder discricionário) é garantido constitucionalmente pelo princípio da separação de poderes, que garante ao administrador uma última margem de conformação que não deve ser preenchida pelo legislador. Casos há em que é desejável que a lei regule com toda a minúcia certa matéria, e são cada vez mais estes casos, outros há em que isso não é exigido nem justo que assim seja.

Esta relação à qual já nos referimos anteriormente, como principal responsável pelo preenchimento do conceito indeterminado da boa-fé pelo autêntico “legislador do caso concreto” no nosso ordenamento, a par, claro está da jurisprudência, principalmente do Supremo Tribunal administrativo[16], é uma relação importantíssima, emprestando uma vez mais a boa fé as suas capacidades normativas. O poder discricionário surge garantido por um bloco de normatividade nuclear, núcleo este onde a boa-fé está incluída, pelo que se defende que é já neste ponto garantido que se relacionam ambos os princípios. Também este poder discricionário surge como um dos principais garantes do tratamento equitativo do caso concreto, surgindo neste âmbito ao lado da boa-fé e sendo, do mesmo modo fiscalizado pelo juiz, ao caberá o difícil processo de averiguar se as informações prestadas, os comportamentos anteriores em situações análogas e não contraditórios, os regulamentos internos, e a própria densidade da norma que atribui a discricionariedade à Administração está conforme, entre outros, com o princípio da boa-fé.

2.5- Conclusões

Desta forma, é a boa-fé aliada à teoria das expectativas legítimas que vincula a Administração a cumprir a sua auto-vinculação criada pela discricionariedade, desde claro, que não vá contra a própria margem de discricionariedade que o legislador deixou ao administrador.
Desta forma, temos uma relação de complementaridade quer na mútua génese quer na simultânea aplicação da boa-fé, a um conjunto de situações muito mais alargado, em relação às doutrinas tradicionais precisamente por se encontrar relacionada com o poder discricionário e serem assim significado da legalidade administrativa.


Continuaremos amanhã nesta análise profunda da infância traumática do princípio da Boa-fé no Contencioso Administrativo Nacional, será que ficou preso na infância ou que está só na "idade do armário"...

[1] Por imperativos sistemáticos remetemos para um estudo mais aprofundado no futuro.
[2] Vide, AMARAL, Diogo Freitas do, Direito Administrativo, vol II, Lisboa, 1988
[3] Distinguindo ainda, dentro do conteúdo material deste princípio, o princípio da igualdade e da proporcionalidade, vide, AMARAL, Diogo Freitas do, Direito Administrativo, vol II, Lisboa, 1988
[4] Vide, Diogo Freitas do Amaral, e vários CPA anotado; Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol II p 136.
[5] E é esta unidade que evita o caos jurídico-social. Bem como o facto do ordenamento assentar em pilares suprapositivos
[6] Entendendo aqui legalidade no sentido stricto sensu, a lei pela lei, e não a juridicidade, como se entende actualmente.
[7] CANOTILHO, J.J. Gomes, e MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa anotada, artigos 1.º a 107.º, vol I, 4ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2007
[8] Apesar de ser uma concretização clara do princípio da Justiça, nunca o desmentimos, mas é-o tal como a grande maioria de todos os outros princípios do nosso ordenamento
[9] Advogamos claro o esvaziamento de sentido em casos, por exemplo de sobreposição e identidade, nestes casos, e cremos que só nestes casos faz sentido esvaziar um princípio de sentido e reconduzir P3 a P4.
[10] Consagrando assim uma excepção à legalidade
[11] Com todos os requisites vide por exemplo AMARAL vol II pp. 210
[12] Cfr. Werner Maihofer e a sua teoria das expectativas legítimas, Die Natur der Sache, Archiv fur- und Sozialphilosophie, 145-174
[13] Vide Fausto Quadros, QUADROS, Fausto de, O concurso público na formação do contrato administrativo, alguns aspectos, in ROA, ano 47, vol III, Dez. pp..725, 1987, nos contratos públicos, com a nota inócua de que o autor do presente trabalho chegou à mesma conclusão que FAUSTO QUADROS sem o ter lido, encontrando-o posteriormente.
[14] Entende-se também este poder por oposição ao poder vinculado da administração pública que é aquele em que a administração não tem margem de manobra nenhuma sendo obrigado a cumprir escrupulosamente o que a lei prescreve
[15] Não nos esqueçamos que este poder discricionário só existe na medida em que a lei o consagra. Enquanto a boa fé é um princípio geral de Direito e também de Direito Administrativo já se admitindo à cerca de dez anos da sua consagração legal. É nos dias de hoje entendido pela maioria da doutrina como um poder condicionado ao fim legal e, claro está, aos princípios e regras jurídica que vinculam a acção da Administração Pública. O mesmo é defender que o Administrador está obrigado a escolher a melhor solução, estamos perante um paradoxo interpretativo, a norma deixa ao critério geral da Administração Pública, enquanto o espírito do sistema vincula o administrador a todos os princípios consagrados quer na Constituição quer no CPA, quer os não consagrados em texto legal algum.
[16] Ac de 13 de Novembro de 1986, AD 307.958, do STA; Ac. de 1 de Outubro de 1992, rec nº 28.867 do STA; Ac. de 1 de Junho de 1993, AD nº 389 do STA; Ac. de 28 de Setembro de 1993 AD nº 389 do STA; Ac. de 9 ed Março de 1995, AD nº416 do STA; Ac. de 4 de Maio de 1995, AD nº410 do STA; Ac. de 19 de Janeiro de 1995 AD nº 410 do STA; Ac. de 2 de Fevreiro de 1995, rec. 22.871 do STA; Ac de 9 de Dezembro de 1993, rec nº 32.573 do STA; Ac. de 24 de Junho de 1994 rec nº 31.316 do STA; Ac. de 23 de Julho de 1994, rec nº 32.909 do STA; Ac. de 11 de Outubro de 1995, rec nº 33.261 do STA; Ac. de 3 de Março de 1999, rec nº 411.889 do STA; Acórdãos retirados de www.dgsi.pt

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