segunda-feira, 9 de maio de 2011

Parte I - A grande odisseia da boa fé no Contencioso Administrativo português

Boa-fé como princípio geral de Direito

Introdutoriamente importa questionarmo-nos se o princípio boa-fé será efectivamente um princípio ou se será uma regra, sabemos contudo, que é uma norma por ter um forte e claro sentido de dever ser.

E a relevância deste apuramento técnico não é mero estímulo intelectual acessório mas da maior importância. Importa ter em conta que a estrutura das regras e dos princípios é diferente, por uma razão muito simples, são maneiras diferentes de apreender a mesma situação, pelo que a sua regulação jurídica vai ser diferente, regulando, também elas de maneira diferente; se não percebermos esta diferença dificilmente compreenderemos os limites quer dos princípios como das regras nem perceberemos a teoria do conflito de princípios (confundindo regras e princípios).

O desenvolvimento da nossa Administração, também por aqui se pode analisar, pela multifuncionalidade das normas administrativas ao que urge uma clarificação tipológica.
Assim, a dificuldade em distingui-los é notória e comum a toda a doutrina, este facto deve-se a várias ordens de razão, nomeadamente, pela indefinição sobre a identidade jurídica nos enunciados normativos, ou seja, um certo descuido no tratamento destes conceitos, bem como o elevado número de normas que tem aparência de princípio mas não são. Foram, no entanto, avançados pela doutrina essencialmente seis critérios de distinção entre Princípios e regras i) generalidade/abstracção, ii) determinabilidade, iii) diferença qualitativa[1], iv) fundamentalidade[2], v) proximidade da ideia de Direito[3], vi) natureza normogenética[4].

1.1- Critérios utilizados para a classificação

i)                    Generalidade/Abstracção
É o critério mais simples e o tradicionalmente utilizado. Importante, pois, é não confundir generalidade com universalidade[5], nem com abstracção. No entanto, não se percebe bem qual a utilidade deste critério uma vez que a única conclusão que podemos tirar é que há normas mais gerais que outras, o seu conteúdo operativo é de facto muito fraco. Este critério tem ainda uma segunda falha[6] lógica, não se percebe bem o conceito de indeterminação, parece querer remeter para a densidade da norma, no entanto, é manifestamente fraco. Segundo este critério os princípios seriam fundamentos de regras e as regras, regras por si só[7].
A única conclusão útil a tirar é que o princípio da boa fé é uma norma com elevado grau de generalidade, ou seja, que necessitará de concretizações normativas posteriores, pelo que será fundamento de inúmeras regras subsequentes (podendo, ainda neste fase do nosso raciocínio lógico ser ela própria uma regra).

ii)                   Determinabilidade
Este critério, contrariamente ao anterior, pretende captar as propriedades exclusivas das normas procurando fazer uma verdadeira diferença qualitativa entre elas. O mesmo é dizer que este critério procura a forma de projecção no ordenamento jurídico por parte das normas. A determinabilidade da conduta é um dos argumentos complexos nesta bipartição regras/princípios, assim todas as previsões, “todas as situações de qualquer género” (não estabelecendo a determinabilidade da conduta) são princípios e todas as previsões que sejam mais específicas são regras, porém, esta previsão pode estar implícita e aqui se coloca o problema interpretativo. Desta forma, sempre que a previsão se encontrar implícita, ou não for muito clara, devemos recorrer à estatuição para clarificar a classificação da norma, ficando sempre com acerteza sobre se é um princípio ou se é uma regra.

Contudo, a complexidade deste critério situa-se exactamente nos casos em que a previsão está implícita, como no caso em análise, o caso da boa fé. Ora sabemos que quer o art. 266.º da CRP quer o art.º 6º-A CPA não contêm uma estatuição expressa, no entanto, a previsão deste princípio também não é clara, é uma previsão geral e abstracta e indeterminável. Teríamos, assim, uma estatuição que remeteria para uma previsão com mais do que um género (toda a Administração Pública e todos os particulares); desta forma podíamos construir o Princípio da boa fé da seguinte forma, em todas as circunstâncias de qualquer género está a Administração Pública bem como os particulares vinculados à boa fé.

Assim, concluímos que a boa fé é um princípio no ordenamento jurídico português, apesar de tudo, acolhemos as críticas feitas a este critério defendendo que a sua fragilidade está nos casos em que a previsão está implícita ou não é completamente perceptível – o nosso caso - e por isso temos que recorrer à estatuição pelo que continuamos a nossa busca de uma prova dedutiva mais segura do conteúdo principológico da boa fé no nosso ordenamento.

iii)                 Diferença qualitativa
Falamos neste caso do conceito introduzido por ALEXY[8], caracterizando os princípios como mandatos de optimização, ou seja, são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, prima facie. Esta sua característica transforma os princípios em normas de coexistência conflitual[9], enquanto as regras são normas de existência excludente. Este critério olha, desta forma, essencialmente ao conteúdo material dos princípios, o que faz com que a sua materialidade possa ser cumprida da forma mais abrangente possível até se deparar com alguma contrariedade, ora, o mesmo é afirmar, que os princípios podem ser cumpridos em diversos graus de realização – adaptando-se na perfeição aos condicionalismos da vida corrente. Efectivamente, esta capacidade normativa de optimização decorre da previsão do princípio e não da sua estatuição, o que faz com que ele absorva tudo o que está contido na previsão até sinal contrário. Ao passo que sendo regras, a sua previsão não deixa espaço para a sua realização em diversos níveis, ou se cumpre a regra ou não se cumpre, têm uma regulação definitiva da matéria em causa, estamos perante o espaço normativo do tudo-ou-nada.

Deste modo, este critério traz-nos finalmente uma conclusão mais segura, a boa fé é um mandato de optimização permitindo realização nos mais diversos níveis e sendo um pressuposto, além de axiológico, normativo, ex ante de qualquer administrador agindo de acordo com a boa fé e de qualquer particular que tem a expectativa que a Administração assim aja, podem, contudo surgir conflitos, momento lógico esse a que ainda não chegámos no nosso estudo e onde a sua aplicação é posta em causa – falamos de conflito de princípios.

iv)                 Fundamentalidade[10]
Regressamos neste ponto a uma análise sob o ponto de vista de Introdução ao estudo do Direito, e a verdade é que os princípios têm um papel estrutural enquanto fontes de Direito que não se confunde, com as regras de maneira nenhuma. A sua posição hierárquica no sistema das fontes de direito e a sua importância no ordenamento jurídico não é passível de classificação como mera regra concretizadora de uma dignidade normativa superior. Uma vez mais pensamos ser claro que a boa fé tem esta dignidade superior de que falamos, sendo ela mesma, princípio geral fonte de Direito.

v)                  Proximidade da Ideia de Direito[11]
Os princípios não são normas ordinárias ou comuns, são eles reflectores do conteúdo programático da ideia de Justiça ou do conteúdo de Direito. Não nos esqueçamos do processo maiêutico que os princípios nos obrigam a fazer quanto à ideia de Direito, ou seu fundamento, ou seja, o intérprete-aplicador não teoriza no vazio, fá-lo balizado por traves mestras desta ordem normativa que tenta concretizar a ideia de Justiça, é, pois, uma busca vinculada a normas programáticas que dão o seu próprio conteúdo à ideia de Direito. Enquanto as regras podem ser normas ordinárias e comuns meramente concretizadoras de uma ideia superior, cá está, de um princípio, é uma regulação meramente secundária e definitiva.
Sendo assim, o princípio da boa fé é manifestamente um princípio, concretiza, em parte, a ideia de Justiça de uma maneira primária e vinculante para as regras secundárias e subsequentes, assumimo-la como fonte de Direito e ela mesma já um preenchimento do conceito altamente indeterminado de Direito ou de Justiça.

vi)                 Natureza normogenética[12]
Encaramos este critério como uma confirmação de todos os outros que expusemos até agora uma vez que o que ele nos vem dizer é que há normas que são fundamento de outras normas, estas normas dão, assim, critérios interpretativos, aplicativos, e facilitam a descoberta da ratio, ao fim ao cabo é como dar o seu código genético a outras normas – estas normas são os princípios.

5.2- Solução e seus corolários

Concluímos, desta forma com toda a segurança que o princípio da boa fé é um princípio jurídico, não há nenhum critério que na maior das suas utilidades não o confirme, estamos perante o princípio da boa fé.
Assim sendo, será o princípio da boa fé um princípio fundamental? Dúvidas se podem colocar por não estar historicamente positivado no nosso ordenamento, no âmbito de Direito Público, sendo esta positivação relativamente recente, aliás tal como já atrás vimos, mas não é se quer passível de dúvida que está introduzida na consciência jurídica nacional[13]. E será que por não ter estado positivado durante cerca de vinte anos, desde revolução não estava objectivado? Não nos esqueçamos que a boa fé, encarada em bruto (sem os seus corolários[14]) pode parecer algo recente mas entendendo os seus corolários no seu âmago não há qualquer dúvida que estava objectivada no nosso ordenamento por uma razão muito simples, é um princípio originário, com elevada densidade ético-jurídico, que é inclusive princípio formador do Estado de Direito. Concluímos por isso que é um princípio fundamental

É sem dúvida nenhuma um princípio garantia, tem por isso uma densidade própria de norma jurídica e força intrínseca, quer positiva, quer negativa, como já fomos antevendo. Tal como LARENZ defende estes princípios vinculam terminantemente o legislador independentemente de estarem consagrados na CRP ou na lei, é um princípio fundamental, ou seja, sobrepõe-se, regra geral, a todas as regras jurídicas de inferior dignidade. É a boa fé por ela própria fonte de juridicidade, está consagrada na CRP mas não tinha que estar uma vez que é princípio geral de Direito e supra positivo, é ela própria elemento fundador da ideia de Direito.

1.3- Decorrências do princípio da boa-fé

Importa agora analisar o arcaboiço principológico da boa-fé assumindo-se como uma autêntica maternidade de princípios e fundamento da ideia de Direito, pelo que também nós temos que preencher este conceito indeterminado.

Assim, é apenas por uma necessidade sistemática que dividimos o instituto e princípio geral da boa-fé, entre princípio da tutela da confiança legítima, princípio da segurança jurídica, princípio da materialidade subjacente, legalidade em sentido amplo ou juridicidade; uma vez que todos estes princípios são uma e a mesma identidade, não se pode defender uma doutrina dividida da boa-fé. Não negamos a maternidade que o princípio da boa-fé pode adquirir dentro da Administração Pública, confiança mútua, legítimas expectativas, materialidade subjacente, padrão de conduta ética geral, conhecimento da lesão de direitos alheios, segurança jurídica, legalidade, etc… O conceito de boa-fé é um conceito indeterminado[15], no entanto por já ter sido suficientemente densificado é coerente sustentar a sua manutenção unitária e não a sua divisão material.

1.3.1- Confiança legítima;

A tutela da confiança é característica intrínseca da ideia de Direito, é inaceitável que determinados direitos subjectivos sejam violados por simples arbítrio. O exemplo escola sempre dado nestes casos é o caso das relações contratuais, em direito público, administrativo, falamos em contratos administrativos[16]. Também neste caso tal como defende FAUSTO QUADROS a boa fé é critério nas relações pré-contratuais não sendo licito o fim das negociações sem razão justificativa.
Apesar de tudo tutela da confiança, é uma tutela de interesses contrários, uma vez que ao proteger as expectativas legítimas de uma parte está a limitar o livre exercício de um direito por parte da outra. Este subprincípio tem diversas maneiras de se concretizar, i) disposições legais específicas, ii) criação de institutos jurídicos novos, e iii) subdivisão noutros princípios mais específicos;

i)                    Disposições legais específicas
Extremamente importantes uma vez que garantam sem sombra de dúvida a aplicação do princípio e conferem-lhe uma materialidade difícil de contestar. São estas concretizações legislativas que fazem com que estudos como o presente estudo não sejam estudos teóricos mas sim conformados com a aplicação prática do Direito[17]

ii)                   Criação de institutos jurídicos novos

Estes institutos derivam eles de uma regra objectiva de boa-fé. São eles próprios que muitas vezes fundamentam o labor interpretativo e lhe conferem uma segurança que permite resolver casos inéditos com as ferramentas jurídicas de que já dispomos. Alguns dos mais importantes institutos de que dispomos, com sede no Código Civil mas de aplicação a toda a ordem jurídica derivam precisamente deste princípio[18].

iii)                 Subdivisão noutros princípios mais específicos
Esta subdivisão não pretende enfraquecer a materialidade comum, antes pelo contrário com a maior especificação de todos os conteúdos que se querem tutelar, criam-se muitas vezes princípios que desenvolvem dogmática própria, e são, em parte, autónomos, não esqueçamos todavia que carecem na maioria das vezes de regresso ao princípio mãe para enriquecimento e adaptação às realidade factícias emergentes não contempladas anteriormente[19]. 

Para se suscitar a aplicação do princípio da confiança há que respeitar certos requisitos, requisitos estes constitutivos da susceptibilidade de aplicação[20]:[21]

a.       Comportamento gerador de confiança (falamos neste caso em boa fé subjectiva e ética)
b.      Existência de uma situação de confiança legítima (falamos neste caso de elementos objectivos)
c.       Frustração da confiança por parte de quem a gerou
d.      Efectivação de um investimento por causa da confiança

A existência destes critérios doutrinais justifica-se para precisar a técnica da ciência jurídica, o mesmo é defender a sua existência e preenchimento para que seja simplificado o trabalho quer ao intérprete-aplicador quer às partes em eventual litígio.
Concluindo, este princípio decorre claramente do princípio da boa fé, sendo uma e só uma identidade material[22].

1.3.2- Segurança Jurídica[23]

A Segurança Jurídica é um princípio de Direito sui generis por não ser inteiramente um princípio nem ser inteiramente uma característica da ideia de Direito, em bom rigor, a segurança jurídica conforma-se com ambas as ideias sem ser inteiramente nenhuma delas. Assim, está inerente na ideia de Direito que, o que está consagrado, assim se mantém, pelo que é segura criação de expectativas jurídicas, o exercício de direitos em certo sentido, e confiança quer na outra parte, quer seja Administração, quer seja o Legislador.
Desta forma, reconhecem-se notórias semelhanças entre a segurança jurídica e a confiança, no entanto como em desenvolvimento posterior desenvolveremos (VI-; 6.3) não são inteiramente coincidentes, pelo que se justifica a manutenção da operatividade distinta de ambos.

Parece assim ser claro que a segurança jurídica não é o respeito cego pela lei, ou o congelamento histórico de todos os textos positivados como Direito, entendê-la neste sentido não só é redutor como errado. Efectivamente a segurança jurídica tutela situações jurídicas já criadas, mas não as tutela pelo congelamento histórico ou pela matematicidade do Direito com soluções estereotipadas e que limitam a aplicação ao caso concreto da justa medida do Direito solucionando da melhor maneira possível aquele litígio. A segurança jurídica tutela estas situações pelo valor da Justiça, e na justa medida em que a sua manutenção não seja mais gravosa que o prejuízo que advém para a contra parte, reconduzindo-se, assim, à aplicação do princípio da boa fé sendo que o bem tutelado é a confiança (no âmbito de direito público, e com as diferenças infra mencionadas (VI-; 6.3) que se coloca nas situações jurídicas criadas.

1.3.3- Legalidade

Neste ponto, ao referirmos o princípio da legalidade como decorrência do princípio da boa fé, referimo-nos em rigor à juridicidade. O mesmo é implicitamente defender que a juridicidade se encontra fundamentada na ideia de boa fé, uma vez que a juridicidade, ou o bloco normativo fundamental de que fala HAURIOU, não se fundamenta na lei em sentido formal, tem que se fundamentar na lei em sentido material, ou seja, nos princípios jurídicos e valores axiológicos que formam esta ideia de Direito. E só assim faz sentido defender que toda a juridicidade está conformada pelo princípio da boa fé, nas suas decorrências máximas. Toda a ideia de juridicidade tem um núcleo fundamental quase intangível, nesse núcleo encontramos a boa fé.
Pelo que, toda a aplicação, mesmo da legalidade em sentido estrito tem que respeitar a boa fé e dela é imagem, ou seja, não é um mero limite, é mais que uma barreira exterior, é uma característica própria, faz parte da materialidade da juridicidade. Assim sendo concluímos que a legalidade é uma decorrência da boa fé, princípio seu próprio fundamentador.

1.3.4- Materialidade subjacente como concretização do padrão ético de conduta

 Por ventura será este um dos princípios que à primeira vista merece maior reserva por parte do leitor, uma vez que o seu conteúdo comunicativo é fraco. Este princípio surge da bipartição clássica entre princípio da confiança, dentro da boa fé, e o de mais conteúdo material que a boa fé tutela. Assim, numa primeira aproximação imprecisa, este princípio da materialidade subjacente visa exactamente tutelar todas as situações materialmente tuteladas pela boa já que não estão incorporadas no princípio da boa fé.

É importante notar, que este princípio está intimamente relacionado com a boa fé no Direito Civil pelo que a sua construção enquanto princípio é em grande parte devida a MENEZES CORDEIRO “na base do recurso à materialidade dos problemas está um papel primordial da boa fé, historicamente assumido, desde os seus inícios, no Direito romano: o do combate ao formalismo, então entendido como submissão rígida dos casos a decidir às proposições legais tidas por aplicáveis”, são estes ensinamentos que depois têm eco na doutrina administrativista.

Seria redutor entender que a confiança esgota a boa-fé, tal como MARCELO REBELO DE SOUSA defende “o princípio da primazia da materialidade subjacente exprime a ideia de que o direito procura a obtenção de resultados efectivos não se satisfazendo com comportamentos que, embora formalmente correspondam a tais objectivos falhem em atingi-los substancialmente[24]. Assim o que este princípio nos diz simplesmente é que o Direito não se basta com meras verdades formais. Pelo que todas as situações em que o seu conteúdo não é conforme com os imperativos de justiça, independentemente de formalmente ser lícito esse comportamento ou válida essa norma, serão tuteladas pela boa fé que garante a sua concretização de facto justa.

Rejeitamos, porém, as críticas feitas por MARCELO REBELO DE SOUSA quanto à pouca operatividade deste princípio como limite da actuação administrativa, o facto de estar limitado pela lei, em nada retira a força jurídica dos nossos argumentos uma vez que a própria lei está sujeita à boa-fé e por isso á primazia da materialidade subjacente, do mesmo modo, afirmar que este princípio tem pouca operatividade porque é muito semelhante à proporcionalidade, não é, em rigor um argumento válido. O argumento anteriormente apresentado falha porque parece alhear-se do facto da materialidade subjacente ser concretizadora, ela mesma, de um padrão de conduta ético, concretização, esta não garantida totalmente pelo princípio da proporcionalidade.

Desta forma, e tal como sustem MENEZES CORDEIRO, “para facilidade de concretização – e sempre na base duma pesquisa assente em casos práticos – podemos apontar três grandes vias de realização do princípio ora em estudo:[25]

a.       Conformidade material das condutas: efectiva realização da ideia de Direito.
b.      Idoneidade valorativa, garante a harmonia dos sistemas e a correcta integração no sistema
c.       Equilíbrio no exercício das posições jurídicas: avaliar necessariamente todas as condutas mesmo as que são tidas como válidas evitando o acto emulativo (actuação gratuita danosa para outrem) e para evitar a actuação gravemente desequilibrada, ou seja violando em absoluto a proporcionalidade com uma desadequação de meios atroz.

Concordamos inteiramente com MENEZES CORDEIRO em relação ao carácter aberto da boa fé, ou seja, a capacidade que boa fé tem, de mesmo desconhecendo as situações futuras, garantir valores fundamentais nessas situações. Esta morfologia de cláusula aberta justifica-se, em parte, pelo conteúdo altamente valorativo e ético com que vimos descrevendo a boa fé, e facilita a solução dos tais casos futuros.

1.4- Enquadramento do princípio da boa-fé na teoria geral dos princípios;

É PAULO OTERO quem nos diz que a existência de um cardápio tão grande de princípios para além de ser norma habilitante a inúmeras competências, é este conjunto, que confere unidade, operatividade e controlo da própria actuação da Administração

Da classificação da boa-fé como princípio há decorrências importantes, a primeira delas é que poderemos teorizar agora sobre conflitos de princípios e da sua solução, o que não poderíamos fazer se tratássemos de regras, que tratando aí de validade, e consequente desaplicação. Falando de conflito de princípios é necessário fazer duas notas introdutórias respeitantes à a) declaração de invalidade de um princípio e aos b) princípios absolutos.

1.4.1- Declaração de invalidade de um princípio

É certamente exotérico falar da declaração de invalidade de um princípio. Como será possível que um princípio seja declarado inválido? Será que é possível avaliar um princípio pela conformidade com a legalidade? Em bom rigor técnico-jurídico, este é o requisito zero para se falar em conflito de princípios, um princípio não existe isolado dentro de um ordenamento jurídico, um princípio é válido e reflecte uma ideia de Direito à luz do espírito do sistema o que faz com se pressuponha sempre, se calhar ingenuamente, a sua validade dentro da ordem jurídica. Por isto mesmo, quanto se fala em declaração de invalidade de um princípio, em bom rigor falamos da declaração de invalidade de uma norma que não chegou a fazer parte do ordenamento[26].

1.4.2- Princípios absolutos

Por mais contrário, à primeira vista, à ideia de Direito que nos possa parecer há uma quantidade ínfima de princípios absolutos. Precisemos este conceito: o que advém do facto de classificarmos certo princípio como absoluto é a sua prevalência em qualquer caso no confronto com qualquer outro princípio, salvo claro está, no confronto com outro princípio absoluto, em que seria necessária a ponderação de bens. Poderá causar pasmo ao leitor, que nem o valor da vida humana seja absoluto, não nos esqueçamos que com a consagração da legítima defesa por exemplo, desde que respeitando os seus requisitos, tirar uma vida humana é aceite pelo Direito. Não aceitamos, no entanto, que não haja nenhum princípio absoluto, pelo que consideramos que o Princípio da Justiça é, por ventura, o único princípio absoluto. Este carácter rarefeito de princípios absolutos que pode causar espanto às mentes que esperavam encontrar uma colunata sólida e absoluta de princípios, não os deve espantar porque esta característica é uma exigência da própria ideia de Direito, que não é uma construção fechada, hermética, e que só é conhecida por iluminados, isto não é Direito, isto não é o conteúdo material reflectido parcialmente pela boa fé. O Direito está antes em construção e em descoberta constante e aperfeiçoamento permanente, tendo em vista o único fim absoluto e que nunca deve ceder ante nenhuma circunstância, a ideia de Justiça.

1.4.3- Conflito de princípios

Podemos, agora, falar num verdadeiro conflito de princípios. Como primeiro requisito[27] para que tal aconteça temos que pressupor dois juízos contraditórios, ou seja, dois operadores deônticos diferentes ou com previsões e estatuições diferentes de modo a que ordenem comportamentos contraditórios entre si “intensifique-se X vs não se intensifique X”, por isso, são casos em que um princípio ordene algo e o outro princípio o proíba – estamos perante uma relação permissão-proibição.

Desta forma, temos juízos contraditórios entre P1 e P2, falamos de dois princípios prima facie, que não podem ser realizados na maior medida possível porque encontraram um obstáculo – o outro princípio -, e que concorrem para solucionar o mesmo caso, a solução será dada pelo único juiz imparcial na busca pelo Direito, o caso concreto, recorremos à já mencionada ponderação de bens[28]

Verdadeiramente esta ponderação de bens mais não é que sob a égide dos princípios estruturais como Igualdade e Justiça, atribuir naquele caso concreto mais peso a um princípio que a outro procurando a solução mais justa para o caso. P1 cederá perante P2 o que não quer dizer de maneira nenhuma que seja minimizado, só significa que naquele caso concreto há uma relação de precedência condicionada. Não se pense, contudo, que a ponderação de bens é feita no total arbítrio do administrador, é lhe exigida toda a justificação e motivação do sopesar de um princípio face ao outro; induzimos, desta conclusão que com o labor aplicativo da ponderação se vai criar uma hierarquia axiológica móvel entre princípios[29].

Ainda antes de considerarmos a relação da boa fé com outros princípios há que atender aos ensinamentos de CANOTILHO[30], quando muito sistematicamente nos diz, que depois de todos estes passos lógicos há ainda uma questão prévia, saber qual é a função do princípio em análise? Se retórico-argumentativa ou se são normas de conduta. É esta questão que nos esclarece se falamos de princípios hermenêuticos (função argumentativa, encontramos o seu sentido útil, muitas vezes ao encontrar a ratio legis de um enunciado normativo) ou de princípios jurídicos (ex: boa fé, segurança jurídica, juridicidade).

1.4.4- Referência ao conceito de princípio

Importa ainda em sede de Teoria Geral dos Princípios jurídicos uma brevíssima referência ao conceito de princípio, diz-nos ALEXY, que “Um princípio ordena a criação ou manutenção das situações que satisfaçam, na maior medida possível, de acordo com as possibilidades fácticas e jurídicas, os critérios que vão além da validade ou satisfação de direito individuais.”. Já DWORKIN concebe os princípios de com um critério mais estreito, como normas que podem ser apresentadas como razões para direitos individuais[31]. Compreendemos assim que também o amplo conceito de princípio nos poderia levantar problemas no desenvolvimento deste tema pelo facto de não ser unânime o conceito que utilizamos, esclarecemos aqui a nossa posição, acompanhando ALEXY.

Continuaremos o nosso estudo crítico sobre o princípio da boa fé no contencioso administrativo percebendo se falamos de uma fórmula vazia, de um princípio meramente substantivo ou de uma porta aberta aos novos desafios do contencioso administrativo do séc. XXI e da idade adulta do contencioso.





[1] Falamos dos princípios como mandatos de optimização Introduzido por ALEXY, , Robert, Teoria de Los Derechos Fundamentales pp. 86
[2] Introduzido por GUASTINI citado por GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p 1160 nota 6.º
[3]Introduzido GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição,p 1161
[4] Introduzido por ESSER
[5] Universalidade reporta-se aos destinatários, pelo que o seu oposto será individualidade.
[6] DUARTE, David, A Norma de Legalidade Procedimental Administrativa - A Teoria da Norma e a Criação de Normas de Decisão na Discricionariedade Instrutória, p 131.
[7] Percebemos rapidamente que esta formulação é fórmula vazia.
[8] Vide, ALEXY, Robert, Teoria de Los Derechos Fundamentales  p 86
[9] Ideia de Zabrelsky
[10] Vide, J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria do Estado, pp. 1160
[11] Vide LARENZ, Metodologia da Ciência Jurídica, pp. 218 e 404

[13] A sua consagração constitucional já há mais de dez anos não deixa margem para dúvidas.
[14] Remete-se para os posteriores desenvolvimentos que fazem inclusive decorrer da boa fé o princípio da segurança jurídica.
[15] Vide CORDEIRO, António Menezes, Da Boa fé no Direito Civil, pp. 699-710.
[16] Cfr. Fausto Quadros, O concurso público na formação do contrato administrativo, in ROA ano 47, pp. 725ss
[17] Exemplos, de disposições legais específicas são o artigo 179.º; 184.º n2; 1099.º; 266.º; 291.º; 1301.º e o 2076.º do CC; seria extenuante expor as mais de 70 remissões que o Código Civil tem para a boa fé, optamos por só transpor as referentes ao princípio da confiança.
[18] Os principais institutos são a culpa in contrahendo no artigo 227.º nº1 do CC, a integração dos negócios jurídicos no artigo 239.º; o abuso de direito no artigo 334.º do CC, a modificação dos contratos por alterações das circunstâncias no artigo 437.º nº1, e a presença no complexo tema da estrutura das obrigações no artigo 762.º do CC
[19] Exemplo magno é o nosso caso, o caso da boa fé, que por sua vez se divide em confiança, segurança jurídica, legalidade, e materialidade subjacente. Por sua vez, neste exemplo em concreto, a confiança pode sistematicamente ser dividido em colaboração da Administração com os particulares, eficiência, etc…
[20] Cfr. Diogo Freitas do Amaral Curso de Direito Administrativo, vol II, pp. 137 ss; António Menezes Cordeiro,  Tratado De Direito Civil… I, I, pp. 411 ss; Jorge Miranda e Rui Medeiros, in Constituição da República anotada, anotação a artigo 266º
[21] Contudo nota Menezes Cordeiro que em certos casos não é necessário preenchimento de todos os critérios, ibidem pp. 413
[22] Queremos não deixar margem para dúvida ao afirmar que princípio da confiança (legítima) é derivado do princípio da boa fé.
[23] Não ficará explicado ao pormenor porque preferimos tratar a segurança jurídica como um princípio, a dúvida é grande e a não ser um princípio será entendida como uma característica do Direito. Tentando ir directamente ao busílis da questão, a segurança jurídica assume tanta importância que tem ser o mais tutelada possível, e no nosso entender ela será tão tutelada se a entendermos como princípio e por isso, também decorrente da boa fé, como se a entendermos como característica do Direito, uma vez que se reflectirá obrigatoriamente no princípio da boa fé e terá tutela igualmente digna.
[24] Cfr. Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos, Direito Administrativo Geral, tomo I, introdução e princípios fundamentais, 2ª edição, Dom Quixote
[25] Vide, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito.. p 416
[26] Por exemplo, se hoje se pretendesse incorporar no nosso ordenamento o anarquismo seria manifestamente contrário a todo o ordenamento seria pois considerado inválido, ou então, por exemplo um princípio geral de presunção de culpa, no lugar de presunção de inocência – falaríamos da declaração de invalidade do princípio da presunção de culpa.
[27] Depois de verificado o requisito zero, que é a validade do princípio à luz da ordem jurídica em questão.
[28]Vide Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, para diferença entre ponderação e harmonização de princípios – consiste mais numa concordância prática de aplicação simultânea de ambos os princípios, lamentavelmente não facilmente conseguida no caso concreto, pelo que preferimos a ponderação de bens como meio de resolução dos conflitos entre princípios.
[29] Vide Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
[30] Ibidem Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, propõe ainda mais uma questão prévia, a de saber qual é o denominador comum entre princípios regras de modo a sabermos se a sua diferença era meramente de grau ou se ao invés é uma diferença qualitativa – face ao supra exposto sobre diferença entre princípios e regras cremos ter ficado claro quais os melhores critérios para a distinção e não é este apresentado por Gomes Canotilho.
[31] As objecções a um modelo puro de princípios são óbvias, este modelo não tem em consideração a Constituição e a sede que ela se tornou de princípios do nosso ordenamento. Este modelo deixa de lado a regulação da Constituição, nomeadamente as regulações restritivas e sendo elas muito variadas. Aqui se põe uma questão capital, saber até que ponto é permitido afastarmo-nos do texto constitucional, mesmo que seja por razões especiais, o modelo de regras e princípios é claro: os princípios mais relevantes devem estar, de alguma forma, referidos na Constituição, nem que estejam implícitos. Aceitamos, desta forma, uma hierarquia de princípios constitucionais, que depois se transporta também para os princípios administrativos, é no entanto, em ambos os casos uma hierarquia móvel dependente do caso concreto.

Sem comentários:

Enviar um comentário