segunda-feira, 23 de maio de 2011

A intervenção do MP junto dos tribunais administrativos

Em virtude das simulações de julgamento que preparamos este semestre, já todos ouvimos falar da intervenção do Ministério Público. Por isso, resolvi fazer um pequeno estudo sobre a sua participação junto dos tribunais administrativos.

O art. 51.º ETAF refere genericamente as funções que o Ministério Público pode desempenhar nos tribunais administrativos. Diz o preceito que «compete ao MP representar o Estado, defender a legalidade democrática e promover a realização do interesse público, exercendo, para o efeito, os poderes que a lei processual lhe confere».
1.      O Ministério Público como autor
Ora, o MP pode, desde logo, ser autor, quando propõe acções no exercício da acção pública.
Esta acção pública é exercida por entidades públicas, no exercício de um dever de ofício, e não por particulares, em defesa dos seus direitos ou interesses.
Ao MP, o CPTA confere amplos poderes para a proposição de acções nos tribunais administrativos, seja em defesa da legalidade, do interesse público, de interesses difusos ou de direitos fundamentais.
Ainda no âmbito desta acção pública, pode o MP prosseguir acções em que o autor era um particular e ela se extinguiu por desistência ou outra causa (a esse propósito, o art. 62.º CPTA).
2.      O Ministério Público como representante do Estado
Resulta do referido art. 51.º ETAF e do art. 11.º/2 CPTA que o MP também representa o Estado nas acções administrativas comuns propostas contra o Estado em matéria de responsabilidade civil ou atinente a contratos[1].
Nestes casos, o MP faz a vez de advogado do Estado, embora também aqui desempenhe uma função de defensor da legalidade[2].
3.      O MP como amicus curiae
A título de «auxiliar de justiça», o MP pode intervir, de forma imparcial, em defesa de determinados valores através de actos que contribuam para o melhor esclarecimento dos factos ou a melhor aplicação do Direito. É este o ponto que mais nos ocupará.
Assim, o art. 85.º CPTA dispõe ter o MP a possibilidade de intervir nos processos administrativos em que não seja parte.
3.1.Momentos que pode ter lugar
Esta intervenção do MP apenas tem lugar nos casos em que se verifiquem os pressupostos que o n.º 2 do artigo enuncia, a saber:
·         Quando esteja em causa a ofensa de direitos fundamentais,
·         Quando esteja em causa a ofensa de um interesse público especialmente relevante ou
·         Quando esteja em causa a ofensa de qualquer dos interesses difusos a que se refere o art. 9.º/2
Esta intervenção do MP consubstancia uma intervenção em defesa da legalidade, nos termos do art. 219.º/1 CRP.
Mas não basta que exista uma qualquer ilegalidade. É exigida uma ilegalidade qualificada[3], seja pela intensidade da lesão de interesses pessoais – no primeiro caso –, pela específica razão de interesse geral que subjaz à emissão do acto ou o dever de praticá-lo – no segundo caso –, ou pela natureza dos bens ou valores co-envolvidos – no último caso.
3.2.Poderes de intervenção
O MP pode, de acordo com o disposto no art. 85.º/2 CPTA, solicitar a realização de diligências instrutórias, bem como pronunciar-se sobre o mérito da causa. Mas qualquer uma dessas intervenções é feita, como refere o preceito, «em função dos elementos que possa coligir e daqueles que venham a ser carreados para o processo», isto é, fica limitada pela natureza das questões que se colocam em cada processo, não se tratando de um dever de ofício.
Podendo coligir elementos, o MP poderá, por sua iniciativa, encetar diligências que lhe permitam uma tomada de posição mais sólida.
O MP deverá, por isso, avaliar os elementos que lhe são enviados e os que conseguir reunir a fim de decidir se a sua intervenção no processo, feita nos moldes acima descritos, se justifica.
Este juízo de oportunidade é feito pelo MP, enquanto titular da função da defesa da legalidade, não podendo ser objecto de controlo jurisdicional. Como afirma Mário Aroso de Almeida[4], «a maior ou menor amplitude da intervenção processual do MP depende, em última análise, da interpretação que os seus magistrados façam quanto à relevância dos interesses em jogo e à intensidade da lesão provocada por situações de ilegalidade administrativa».
Ao MP não cabe defender a legalidade processual. Ao contrário do que dispunha o art. 27.º/1 LPTA[5], com a revisão de 2004, deixou o MP de poder intervir pela regularização da instância. Tal resulta da letra do art. 85.º/2 CPTA, que refere unicamente a pronúncia sobre «o mérito da causa».
Parece resultar esta restrição do princípio de eficiência processual, que visa evitar decisões de forma[6].
Uma nota impõe-se quanto ao art. 85.º/4 CPTA. Permite o preceito ao MP que, nos processos impugnatórios, suscite quaisquer questões que determinem a nulidade ou a inexistência do acto impugnado, independentemente das que o autor argua na petição. Deverá considerar-se ser esta possibilidade independente dos requisitos do n.º 2 do mesmo artigo, de modo a não estar esta intervenção do MP sujeita à ponderação dos interesses aí prevista. Ao contrário do n.º 3, que permite que o MP invoque causas de invalidade diversas das arguidas «para o efeito do disposto no número anterior», essa restrição não é feita no n.º 4.
3.3.O momento da intervenção
A intervenção do MP passou a ter lugar num único momento processual, imediatamente depois da «junção do processo administrativo aos autos, ou, não tendo esta lugar, da apresentação das contestações», nos termos do art. 85.º/5 CPTA.
No entanto, Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira[7] admitem a notificação ao MP dos articulados supervenientes (art. 86.º CPTA).
E parecer fazer sentido permitir-se uma intervenção do MP após os articulados e à junção do processo administrativo. Ela permite tanto um parecer de mérito do MP mais consistente, por melhor conhecedor da realidade sub judice, como o contraditório das partes relativamente à sua posição.
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem não tem visto com bons olhos a participação do MP em juízo, pois considerou-a já violadora do art. 6.º CEDH[8].
Depois disso, o TC já se pronunciou em sentido aproximado, ao considerar a intervenção do MP nas sessões de julgamento do STA como violadoras do art. 20.º/4 CRP (norma correspondente ao referido art. 6.º/1 CEDH).
Diz-se, pois, no Ac. TC n.º 345/99, de 15 de Junho, que «quanto ao artigo 15º[9] do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 299/96 de 29 de Novembro, há que julgá-lo inconstitucional, por violação do nº 4 do artigo 20º da Constituição, uma vez que não permite às partes tomar conhecimento e discutir qualquer elemento da intervenção do Ministério Público no processo que possa influenciar a decisão.»
Não parece ser de temer a intervenção do Ministério Público, sempre que feita de forma transparente e em moldes que assegurem o contraditório.
Nessa medida, o seu parecer deve ser notificado às partes para que elas possam sobre ele pronunciar-se[10], podendo a resposta ter lugar na fase das alegações e, se a elas não houver lugar (arts. 78.º/4 e 83.º/2 CPTA), em novo articulado que deve ser admitido[11].
Como garante da legalidade material, só intervindo depois de juntos todos os articulados e depois dos fundamentos novos invocados na fase de alegações é que o MP pode desempenhar cabalmente as suas funções.
Só assim pode assegurar-se a verdadeira e própria função do MP que, neste caso, não representa o Estado, mas visa assegurar a legalidade, em cumprimento das funções que lhe são constitucionalmente cometidas – art. 219.º/1, CRP, que determina ser sua função, além da representação do Estado, a defesa «dos interesses que a lei determinar».
Ademais, parece ser tal solução imposta pela dinâmica do processo e pelo princípio da cooperação processual. Quando emita parecer sobre o mérito da causa, o MP deve ser ouvido sobre as novas incidências processuais que possam vir a interferir na posição por si anteriormente defendida, sob pena de ficar a sua intervenção inicial despida de qualquer utilidade[12].
4.      Conclusões
O MP detém diversas funções em processo administrativo. Se, como autor e como representante do Estado, não se levantam muitas dúvidas quanto à sua intervenção, tal já não acontecerá quanto à sua função de auxiliar da justiça, enquanto garante da legalidade material.
Mas parece ser este papel da maior importância pois, enquanto garante da legalidade e atendendo aos interesses em causa, o seu parecer, contanto que sujeito ao contraditório, no respeito pelo princípio do Estado de Direito democrático, pode ser do maior relevo para uma boa decisão de mérito o que, em última instância, é o objectivo do sistema judicial.


[1] Porém, se a questão relativa a matéria contratual ou de responsabilidade for, contudo, cumulada em acção administrativa especial no âmbito da qual seja deduzido um pedido dirigido contra um órgão ministerial no exercício de poderes de autoridade, a legitimidade é do Ministério e não do Estado, não cabendo já o patrocínio ao MP. Mário Aroso de Almeida retira esta conclusão do facto de resultar da «formulação restritiva do art. 51.º ETAF que ao MP não incumbe representar qualquer outra entidade que não o Estado». (Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2010, p. 64)
[2] Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 9.ª ed., Almedina, 2008, p. 154
[3] Mário Aroso de Ameida, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª ed., Almedina, 2010, p. 555.
[4] Mário Aroso de Ameida, Comentário …, op. cit., p. 556.
[5] Que dispunha «Salvo nos recursos que interponha em defesa da legalidade, pode o Ministério Público, mediante vista dos autos ou, nos demais casos, em requerimento:
a) Suscitar a regularização da petição, excepções, nulidades e quaisquer questões que obstem ao prosseguimento do recurso e pronunciar-se sobre questões que não tenha suscitada;
b) Promover diligências de instrução;
c) Emitir parecer sobre a decisão final a proferir;
d) Arguir vícios não invocados pelo recorrente;
e) Requerer, assumindo a posição de recorrente, o prosseguimento de recurso interposto durante o prazo em que podia impugnar o respectivo acto, para julgamento não abrangido em decisão, ainda não transitada, que tenha posto termo ao recurso por desistência ou outro fundamento impeditivo do conhecimento do seu objecto.»
[6] Mário Aroso de Ameida, Comentário …, op. cit., p. 556.
[7] Código de Processo nos Tribunais Administrativos Anotado, Coimbra, 2006, p. 509
[8] Nesse sentido, Acórdão Lobo Machado, Recueil des Arrêts et Décisions, n.º 3, 1996-I, onde o tribunal considerou ser violadora do art. 6.º CEDH a intervenção do Ministério Público no processo laboral, quer dando pareceres que não eram conhecidos pelas partes quer estando presente quando o Supremo Tribunal de Justiça deliberava.
[9] A disposição da LPTA que permitia essa intervenção.
[10] Solução que, de resto, é consagrada no âmbito do recurso jurisdicional – art. 146.º/2 CPTA.
[11] No entanto, o parecer não abre uma fase autónoma de discussão da causa, pelo que apenas poderão as partes, na parte em que o parecer do MP as afectar, rebater os argumentos nele contidos, não havendo lugar a uma contra-resposta pela parte contrária.
[12] Mário Aroso de Ameida, Comentário …, op. cit., p. 560.

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