quinta-feira, 19 de maio de 2011

As Garantias dos Particulares no Contencioso Administrativo: o Processo de Intimação para Protecção de Direitos, Liberdades e Garantias

1. Introdução

            A Constituição (CRP) garante aos cidadãos no seu artigo 20.º o direito de acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. Porém, como nos diz Carla Amado Gomes “Se é verdade que a essência do Direito – e dos direitos – não depende da susceptibilidade da sua imposição coerciva e da sancionabilidade das condutas prevaricadoras, não é menos certo que a realização de um Estado de direitos fundamentais, num mundo tão perfeito, depende de mecanismos adequados à sua tutela plena e efectiva.”[1] É, então, neste contexto e com a necessidade de se atender às exigências constitucionais do artigo 268.º, n.º 4 CRP saído da Revisão Constitucional de 1997 que surge o novo meio processual dos artigos 109.º a 111.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA).
            Ainda como notas introdutórias, há duas questões que não podem ser esquecidas. Em primeiro lugar, é de referir que o legislador do CPTA ultrapassou a exigência constitucional do já mencionado artigo 268.º, n.º 4, não se restringindo aos direitos, liberdades e garantias pessoais, mas estendendo o âmbito de aplicação do artigo 109.º CPTA a todos os direitos, liberdades e garantias. Já a segunda nota prende-se com as dúvidas que possam surgir face ao artigo 17.º CRP que contém uma cláusula de extensão de regime dos direitos, liberdades e garantias a direitos fundamentais de natureza. Uma vez mais, Carla Amado Gomes entende que também estes últimos se devem considerar abrangidos pela norma do artigo 109.º CPTA uma vez que “a abertura demonstrada pelo legislador ao afastar a limitação da natureza pessoal do direito revela a intenção de alargar o âmbito da providência”[2].
            Quanto à legitimidade das partes há sempre que se fazer uma análise bipartida: por um lado teremos a legitimidade activa e, por outro, a legitimidade passiva. Quanto a esta última o problema é resolvido pelos n.º 1 e 2 do artigo 109.º CPTA. Já a legitimidade activa depende essencialmente da relação entre o requerente e a posição subjectiva defendida, ou seja, será parte legítima “todo aquele que alegar e provar sumariamente a ameaça de lesão (ou início de lesão) de um direito, liberdade ou garantia através de uma acção ou omissão, jurídica ou material, de entidades prossecutoras de funções materialmente administrativas.”[3],[4].
            Passemos, então, à análise do mecanismo dos artigos 109.º e seguintes do CPTA.

2. Pressupostos processuais e condições de admissibilidade do pedido

            Relativamente aos pressupostos processuais do processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias há que referir dois: a competência do tribunal e o prazo de apresentação do pedido.
            Num momento prévio, e chamando à colação o artigo 4.º, n.º 1, alínea a) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), pode concluir-se – e, aliás, tal facto estava já subentendido na exposição anterior – que a matéria aqui em análise cabe no âmbito da jurisdição administrativa uma vez que é a esta que compete a apreciação de litígios que tenham por objecto a tutela de direitos fundamentais. Assim, e de acordo com o artigo 44.º, n.º 1, 1.ª parte ETAF, caberá aos tribunais administrativos de círculo tomar conhecimento do pedido em primeira instância e, face ao disposto nos artigos 16.º e seguintes CPTA que se referem à competência territorial (nomeadamente, ao artigo 20.º, n.º 5 do mesmo diploma), os processos de intimação que não se refiram a pedidos de intimação para prestação de informações, consulta de documentos e passagem de certidões, devem ser instaurados no tribunal da área onde deva ter lugar o comportamento ou a omissão pretendidos.
            Já quanto ao segundo pressuposto processual é de referir que a apresentação de um processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias não se encontra sujeita a qualquer prazo, adoptando-se aqui a posição de Carla Amado Gomes que nos parece ser a mais garantística e, por conseguinte, a mais adequada ao problema em análise[5].

            Centremo-nos agora nas condições de admissibilidade do pedido. Face à redacção do n.º 1 do artigo 109.º CPTA podemos desde logo retirar como requisitos de admissibilidade da intimação os seguintes: a urgência e a indispensabilidade da mesma e a impossibilidade ou insuficiência do decretamento provisório de uma providência cautelar.[6]
            A urgência da intimação – que deverá ser encarada num sentido subjectivo face à situação concreta do requerente – prende-se com o carácter dos processos onde esta intimação se insere, os processos urgentes, e, ademais, não faria sentido recorrer-se à tutela cautelar uma vez que o processo seria perfeitamente viável se se utilizassem as acções comum ou especial previstas no CPTA.
            Em segundo lugar, a indispensabilidade da intimação, tal como o requisito da urgência, deverá ser ponderada no contexto concreto do requerente e refere-se à inexistência de qualquer outro meio específico de tutela ou, mesmo existindo tal meio, apenas a intimação consegue tutelar o direito, liberdade ou garantia de forma adequada.
            Relativamente ao terceiro requisito, Guerreiro Morais é irrepreensivelmente claro: “A impossibilidade de decretamento provisório de uma providência cautelar prende-se com o facto de ao decidir-se da procedência do pedido estar, ao mesmo tempo, a dar-se uma resposta juridicamente irreversível sobre a situação em causa, não sendo possível regular-se provisoriamente a situação por um eventual futuro processo principal ficar prejudicado por falta de objecto. Uma pronúncia do juiz implica necessariamente decidir do mérito da questão a fazer em processo principal.”[7]
            Por fim, a insuficiência do decretamento provisório de uma providência cautelar mais não expressa do que a impossibilidade de composição provisória do litígio, exigindo-se a sua solução definitiva porque a pretensão do requerente apenas se satisfaz com uma decisão de mérito.
Uma nota para referir que se não estiverem preenchidas as condições de admissibilidade do pedido, o processo poderá ser convolado num processo cautelar.
            Face ao que fica exposto, e seguindo novamente a opinião de Guerreiro Morais[8], podemos concluir que nos encontramos perante uma dupla subsidariedade da intimação face ao decretamento provisório de uma providência cautelar (veja-se o artigo 131.º CPTA a este respeito) e a qualquer outro meio que eficazmente tutele a posição do requerente (incluindo-se aqui as acções comum e especial acompanhadas ou não de uma providência cautelar).
           
3. Tramitação e recursos

            Relativamente à tramitação do processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias interessa mencionar os artigos 110.º e 111.º CPTA. Característica principal da tramitação é a possibilidade da sua divisão em quatro “partes” diferentes de acordo com a rapidez com que a intimação pode (e deve) ser resolvida. Assim, adoptando a terminologia de Carla Amado Gomes: 1. a urgência ordinária obedecerá ao disposto no artigo 110.º, n.º 2 CPTA; 2. a urgência moderada deverá seguir o procedimento dos artigos 87.º e seguintes CPTA para que o artigo 110.º, n.º 3 CPTA remete; 3. a urgência especial submete-se ao regime do artigo 111.º, n.º 2 CPTA; e 4. a urgência extraordinária  que segue o n.º 1 do artigo 111.º CPTA[9].
            Apesar desta celeridade que caracteriza a tramitação do processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias o legislador não esqueceu o princípio do contraditório que o artigo 20.º, n.º 4 CRP consagra. Assim, apesar do estabelecimento de prazos curtos, foi garantida a audição do requerido (ainda que por qualquer meio de comunicação que se revele adequado) no n.º 2 do artigo 111.º CPTA.

            Por fim, e muito sumariamente, referir que das decisões de improcedência do processo aqui em análise cabe sempre recurso pelo artigo 142.º, n.º 3, alínea a) CPTA; e das decisões de procedência, o recurso do requerido deverá obedecer ao disposto no artigo 142.º, n.º 1 CPTA e, portanto, o valor da causa terá de ser superior à alçada do tribunal de que se recorre.

Raquel Maia Arêde (N.º 17512)
4.º Ano, Subturma 6



[1] Amado Gomes, Carla, Pretexto, Contexto e Texto da Intimação para Protecção de Direitos, Liberdades e Garantias (in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, volume V). Coimbra: Almedina, 2003, p. 385.
[2] Amado Gomes, Carla, Pretexto…, p. 403.
[3] Amado Gomes, Carla, Pretexto…, p. 410.
[4] Guerreiro Morais, Jorge, A sensibilidade e o bom senso no Contencioso Administrativo. Um breve ensaio sobre a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias (in O Direito, A. 139, n.º 5). Lisboa, 2007, pp. 1123.
[5] Amado Gomes, Carla, Pretexto…, p. 405 por oposição a Guerreiro Morais, Jorge, A sensibilidade…, p. 1124.
[6] Guerreiro Morais, Jorge, A sensibilidade…, pp. 1118-1119.
[7] Guerreiro Morais, Jorge, A sensibilidade…, p. 1120.
[8] Guerreiro Morais, Jorge, A sensibilidade…, p. 1120.
[9] Amado Gomes, Carla, Pretexto…, p. 418.

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