sexta-feira, 20 de maio de 2011

A aceitação do acto

A aceitação do acto é um pressuposto processual do direito administrativo relativo ao sujeito, nos termos do qual a aceitação de um acto administrativo pelo particular interessado exclui a possibilidade de ele o impugnar judicialmente. Quando este facto ocorre, não é possível apreciar o mérito da causa. Esta figura consta do artigo 56º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CTPA), no qual refere que, se o particular aceita o acto administrativo, fica este privado de o impugnar posteriormente à aceitação do mesmo.
De acordo com a lei, a aceitação em causa tanto pode ser expressa ou tácita, sendo que do nº 2 do artigo 56º CPTA se retira que esta última tem que resultar numa prática espontânea e sem reserva, de facto incompatível com a vontade de recorrer.

Segundo a orientação de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, a aceitação tácita é aquela que resulta de factos praticados ou de declarações feitas com objecto diferente, mas que apontam concludentemente no sentido de que o seu Autor se conformou com os efeitos do acto praticado; é dizer que existe um comportamento incompatível com a vontade de impugnar, que, se quisesse impugnar, não se praticariam tais factos ou fariam tais declarações. Entendem também que só uma aceitação livre, incondicionada e sem reservas poderá ser entendida como impeditiva do direito de acção. Quanto à declaração tácita, importa referir ainda o disposto no artigo 217º do Código Civil.
A lei dispõe ainda quanto à matéria da aceitação do acto nos artigos 53º nº4 e o 160º nº 2 do Código do Procedimento Administrativo.

Existem várias opiniões sobre esta matéria que cabe analisar de seguida:
A aceitação do acto, tal como ela existe no direito português, é caso único na Europa.
Por cá, ela foi concebida como tendo uma dimensão da legitimidade activa, equiparada e confundida com a renúncia ao direito de impugnar, ou com a queda do prazo de impugnação que iria afectar a legitimidade do aceitante, segundo MARCELLO CAETANO.

Para VASCO PEREIRA DA SILVA, este tratamento prende-se com os “traumas da infância difícil” do Contencioso Administrativo, pois a Doutrina objectivista então vigente não reconhecia o interesse em agir como pressuposto processual autónomo, representando-o como mera condição da legitimidade. Reconduz a aceitação à falta de interesse processual, dado que o particular tanto pode emitir uma declaração expressa de aceitação, como pode resultar da prática, espontânea e sem reserva, de facto incompatível com a vontade de impugnar. Ora, não faz sentido existir um direito de impugnação ad eternum quando do comportamento do particular se deduz que, com toda a probabilidade, já houve aceitação.
Não obstante, não fica afastada a possibilidade de o particular, (desde que com respeito pelos prazos de impugnação), pretender revogar a declaração de aceitação ou modificar o seu comportamento, nos termos do qual o juiz deve apreciar o comportamento do interessado em razão do interesse em agir, só podendo rejeitar o pedido quando esse faltar, caso contrário, estar-se-ia a negar um direito constitucionalmente consagrado de acesso ao juiz administrativo, segundo o artigo 268º nº4 da CRP.

No caso de RUI MACHETE, que distingue a aceitação do acto ou da pretensão da renúncia ao direito de impugnar, entende que aquela tem antes de tudo carácter e efeitos substantivos, ou seja, quer com isto dizer que a extinção do direito ou do interesse legalmente protegido que daí decorre tem como consequência a preclusão do direito de impugnação judicial. Refere que a aceitação é uma declaração negocial (porque se encontra na disponibilidade do interessado) que, apesar de pertencer ao âmbito substantivo, produz efeitos processuais, pois ao extinguir a posição jurídica substantiva, o particular perde o seu direito de acção para defesa de um direito ou interesse, bem como o direito de recurso. Como refere o autor: «A posição de vantagem de um sujeito do ordenamento jurídico em ordem a um bem objecto do poder administrativo, (…) não sobrevive se desaparecer a possibilidade de impugnação do acto que lhe é desfavorável.» Assim, se o tribunal for chamado a pronunciar-se sobre uma pretensão de tutela de um interesse ilegítimo ou inexistente, deverá considerar-se incompetente, porque não há nesta situação nenhum problema em causa. Embora demonstre a diferença entre a aceitação do acto, enquanto acto de disposição de uma situação subjectiva que se encontra na titularidade do particular, e renúncia ao recurso, por implicar uma mera manifestação unilateral da vontade, através da qual se abdica daquele direito em relação a uma determinada situação substancial, o autor admite que aquela tem os mesmos efeitos desta última.
Considera a aceitação do acto administrativo, enquanto requisito negativo de legitimidade, “um acto de disposição de uma situação subjectiva que esteja na titularidade do particular. A aceitação da disciplina desfavorável do acto administrativo traduz-se em abdicar do seu interesse à disciplina favorável, isto é, em renunciar ao interesse legítimo”. Estaríamos, neste caso, perante uma figura próxima da renúncia ao recurso, como fazem MÁRIO AROSO DE ALMEIDA E CARLOS ALBERTO CADILHA na anotação ao artigo 56º do CPTA.

Por outro lado, para VIEIRA DE ANDRADE, a aceitação do acto não pode ser confundida com as figuras da renúncia ao recurso e do decurso do prazo de impugnação. A renúncia traduz-se numa manifestação de vontade do particular no sentido do não exercício do direito de impugnar, enquanto a aceitação do acto tem subjacente uma manifestação de vontade positiva relativamente aos efeitos produzidos pelo mesmo. Quanto ao decurso do prazo, cuja consequência é a caducidade do direito de recorrer, nunca poderia exprimir uma manifestação de vontade, porque o não exercício pode ter sido determinado por diversas razões. Entende que a figura trata-se de um «mero acto jurídico, perante cuja verificação a lei determina a produção de um efeito – a perda de faculdade de impugnar – independentemente do conteúdo da vontade do particular quanto à produção desse resultado.»
Deste modo, está-se perante um efeito de “perda do direito” em consequência de uma atitude do particular, de conformação com os efeitos desfavoráveis do acto, ou seja, de uma aceitação voluntária do resultado, livre e esclarecida, ligada aos conceitos da estabilidade dos efeitos do acto administrativo e da economia processual. Posto isto, a aceitação deve ser analisada como pressuposto processual autónomo quer da legitimidade, quer do interesse em agir.

Importa ainda salientar CARLOS ALBERTO CADILHA, segundo o qual a caracterização da aceitação do acto administrativo depende da opção que se fizer quanto à natureza jurídica da aceitação: poderá entender-se como uma situação de ilegitimidade activa, por perda do interesse pessoal e directo em impugnar, ou como uma situação de falta de interesse em agir, por o aceitante não ter já necessidade da tutela judicial, ou ainda como um caso de impugnabilidade do acto pelo aceitante, entendido como um pressuposto processual autónomo.

Surge aqui um problema quanto à impossibilidade de impugnação do acto, uma vez que este pode abrir caminho à inconstitucionalidade deste preceito por violação do Princípio do Acesso ao Direito consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa (CRP). No entanto, de acordo com a jurisprudência, nomeadamente através do Acórdão do Tribunal Constitucional nº311/2000, no âmbito do qual se suscitou a inconstitucionalidade desta disposição por violação do artigo 20º, nº2 da CRP, conduzindo a uma situação de negação da justiça pelo facto da aceitação do acto pelo particular afastar a possibilidade de ele o impugnar judicialmente, julgou o Tribunal Constitucional o preceito não inconstitucional.

Por fim, o pressuposto processual que foi aqui objecto de análise poderá caracterizar-se, nas palavras de Vieira de Andrade como “um acto jurídico voluntário ao qual a lei reporta um certo efeito de direito – a perda da faculdade de impugnar – independentemente do particular ter ou não querido a efectiva produção desse resultado”.
A aceitação não se confunde com a perda dos requisitos de legitimidade e interesse em agir uma vez que a legitimidade é um pressuposto que se deve manter em todo o processo e como tal, a aceitação do acto deve ser vista como um pressuposto processual autónomo, distinto da ilegitimidade e da falta de interesse em agir.



Bibliografia:
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, A Justiça Administrativa. Coimbra: Almedina, 2000 (3.ª edição),
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, A aceitação do acto administrativo, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 2003,
PEREIRA DA SILVA, Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise: Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo. Coimbra: Almedina, 2009 (2.ª edição actualizada),
AROSO DE ALMEIDA, Mário, Comentário ao CPTA, Almedina, 2010, 3ºed.,
CAETANO, Marcello, Manual de Direito Administrativo, I, 9ª ed. e II, 8ª ed.,
MACHETE, Rui, Sanação (do acto administrativo inválido),
CADILHA, Carlos Alberto, Dicionário do contencioso administrativo.

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